A criança como vítima de violência doméstica – o colo da lei

Façamos todos, em uníssono, o nosso caminho, cada um fazendo a sua parte, não deixando de acudir às crianças, o elo mais fraco em todas as cadeias, quando as virmos envolvidas nestas «guerras de rosas».

1.      «No princípio era o Verbo».

Ou o número.

Que reproduz os rostos e a realidade nua e crua da espuma dos dias.

Partimos sempre dos dados estatísticos que nos envergonham e nos devem preocupar pois só teorizamos porque há sujeitos envolvidos e casos reais.

Crianças e jovens assistiram a mais de 84 mil casos de violência doméstica em oito anos – nos últimos oito anos 13.133 crianças foram tocadas pela violência doméstica e muitas mais assistiram a situações de violência na família.

Mas falamos aqui nesta sede de que tipo de vítimas?

 

2. Exatamente, porque sofrem maus tratos físicos e psíquicos e estão sujeitas a comportamentos que afetam gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional, as crianças tocadas, mais de longe ou mais de perto, pela violência doméstica são crianças em perigo [à luz do artigo 3º/2, alíneas b) – sofre maus tratos físicos e psíquicos – ou f) – fica sujeita a comportamentos que afetam gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional – da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, doravante LPCJP].

Se a criança presenciou violência, está em perigo à luz do artigo 3º/2 b) – mal estar psíquico – e f) da LPCJP.

Se a criança foi batida, bastará para classificar o perigo a alínea b) do artigo 3º, n.º 2 da LPCJP.

O objetivo primordial tem de ser, pois, a proteção destas crianças.

Sabemos que muitas vítimas de violência doméstica, incluindo crianças, sofrem traumas profundos.

A sua vida, se o evento traumático não for tratado, passa a ser organizada de forma condicionada, como se o que causou o trauma ainda estivesse a acontecer, sem alteração e com a mesma intensidade. É isso que define, de forma simples, um evento traumático.

Como alguém já escreveu, cada nova experiência é contaminada pelo evento passado, como se uma gota de petróleo tivesse caído numa bacia de água límpida.

E temos por adquirido que a violência doméstica interfere negativamente na parentalidade, designadamente (como bem nos ensina o psicólogo Mauro Paulino), face ao facto de os cuidadores vítimas se apresentaram emocionalmente distantes, indisponíveis ou incapazes de satisfazer as necessidades dos seus filhos (como forma de evitar a violência, as mães – usualmente as mais violentadas – priorizam a satisfação das necessidades dos parceiros.

Porque os danos físicos se curam mas o sofrimento emocional tende a permanecer toda a vida e porque a criança necessita de uma vinculação segura, assentemos de vez que a exposição à violência afeta o seu saudável desenvolvimento, quer seja violentado em termos físicos, quer assista a tais cenas violentas.

Porque os danos físicos se curam mas o sofrimento emocional tende a permanecer toda a vida e porque a criança necessita de uma vinculação segura, assentemos de vez que a exposição à violência afeta o seu saudável desenvolvimento, quer seja violentado em termos físicos, quer assista a tais cenas violentas.

Como bem acentua António Castanho:

Ao contrário de experiências traumáticas de episódio único, como acidentes, catástrofes naturais e outras em que o estímulo ocorre e a vítima pode ter uma resposta adaptativa adequada (fugir/enfrentar/congelar) que pode ser desativada, após o perigo passar, na violência doméstica isso não acontece.

No caso da violência doméstica, a vítima é constantemente “bombardeada” com estímulos que ativam os mecanismos associados ao stress e não pode acionar os mecanismos de fuga/enfrentamento ou congelamento, pois está aprisionada, sem possibilidade de procurar solução imediata.

Isto é particularmente grave nas crianças, pois a constante ativação dos mecanismos de resposta ao stress pode causar danos na estrutura cerebral, em desenvolvimento, com todas as consequências associadas.

E ensina-nos a Ciência, com aturados e rigorosos estudos empíricos:

Crianças que crescem em famílias afetadas por violência e abuso doméstico têm:

  • Um risco maior de problemas de saúde mental ao longo da vida;
  • Risco aumentado na saúde física;
  • Risco de abandono escolar e outros desafios educacionais;
  • Risco de envolvimento em comportamentos criminais e dificuldades interpessoais em relacionamentos e amizades futuras;
  • São também mais propensos a sofrer e a praticar bullying e são mais vulneráveis ao abuso e exploração sexual, além de maior probabilidade de se envolverem em relacionamentos violentos.

De acordo com Ana Isabel Sani, os estudos realizados apontam para a seguinte conclusão:

As crianças expostas à violência parental têm mais problemas comportamentais, exibem afeto significativamente mais negativo, respondem menos apropriadamente às situações, mostram-se mais agressivas com os pares (e.g., situações de bullying) e têm relacionamentos mais ambivalentes com as pessoas que delas cuidam do que as crianças de famílias não violentas.

 

3. Por tudo isto, é que se impõe uma conclusão que penso ser indubitável e incontornável:

  • Cada vez mais se tem entendido, e BEM, que uma criança deve ser considerada vítima DIRETA – e não só vicariante – de violência doméstica quando é exposta ao crime e não apenas quando é a destinatária principal da violência exercida.

A consequência de se ter inventado algo que são os filhos “vítimas indiretas” é devastadora, havendo, agora, muita, demasiada, injustificada, demora em emendar a mão.

Por isso, o melhor caminho é considerar a criança como vítima (caindo por terra os epítetos «direta» e «indireta») quando assiste a cenas de violência em casa.

A criança que presencia, ouve ou percepciona a violência exercida por um dos progenitores contra o outro, com muito mais acuidade quando esses atos de violência são sistemáticos e se prolongam ao longo de meses e até anos, encontra-se numa situação de vitimização tão ou mais grave do que aquela que é vivenciada pelo próprio progenitor a quem são, em primeira linha, direcionados os atos violentos.

Vem sendo notado que entre testemunhar a violência no seio familiar ou para-familiar e ser vítima de outro tipo de maus-tratos, que lhe sejam diretamente dirigidos, existe uma confluência dos efeitos nefastos para a saúde mental da criança.

Vem sendo notado que entre testemunhar a violência no seio familiar ou para-familiar e ser vítima de outro tipo de maus-tratos, que lhe sejam diretamente dirigidos, existe uma confluência dos efeitos nefastos para a saúde mental da criança.

Por isso:

  • Quando um homem agride a sua companheira/mulher, mãe de seus filhos, na presença destes, estamos, pois, perante um concurso efetivo de dois crimes de violência doméstica, um em que é vítima o progenitor, agravado pela circunstância de os fatos terem sido cometidos na presença da criança, integrando a previsão do art. 152.º, n.º 1, als. a), b) ou c), consoante o caso, e n.º 2, al. a), e outro em que a vítima é a criança que assiste ao desenrolar dos atos violentos de um progenitor contra o outro, subsumível ao tipo agravado, previsto no art. 152.º, n.ºs 1, al. d), e 2, al. a) do Código Penal.

Quanto ao futuro legislativo, não obstante defendermos que o tipo de crime de violência doméstica, na sua atual redação, comporta tais fatos, seria desejável que a previsão da norma fosse absolutamente inequívoca quanto ao reconhecimento de que as crianças são também vítimas do crime quando vivenciam a violência no contexto familiar de que fazem parte – mesmo quando os atos do agressor não a visam diretamente mas, como espetadoras da violência dirigida a outrem que lhes é familiar e afetivamente muito próxima, figuram como vítimas diretas do ilícito.

 

4. E termino em tom operático.

Falando de medo.

O tal medo que, segundo O’Neill, «vai ter tudo, tudo… Penso no que o medo vai ter e tenho medo que é justamente o que o medo quer».

Há muitas crianças a viver com medo.

E, por isso, devemos estar atentos ao que se passa nos casarios e denunciar o que pode aterrorizar a vida de uma criança.

Mas sempre com a ideia de que não podemos nem devemos ignorar as cifras negras e ocultas, pois as aparências são enganadoras – no prato mais bonito serve-se a pior refeição e muitas vezes serve-se a melhor das refeições naquele que dizem, insistentemente, ser um caco falhado.

Como escreveu P. Vries, «quando já não suporto pensar nas vítimas dos lares desfeitos, começo a pensar nas vítimas dos lares intactos».

Façamos todos, em uníssono, o nosso caminho, cada um fazendo a sua parte, não deixando de acudir às crianças, o elo mais fraco em todas as cadeias, quando as virmos envolvidas nestas «guerras de rosas».

Porque falar sobre a INFÂNCIA destas crianças com medo é um acto de AMOR, o mesmo que o Senhor Deus nos deu para ofertar sem saldos ou meias-palavras…

 

Coimbra, 9.3.2024, ao som de Brahms

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.