A arte do encontro

Deixando que Deus nos liberte do medo da perda, ficando mais disponíveis para o que a Vida oferece, vamos aprendendo esta arte do encontro com o Pai, Ele que tudo criou e entende até ao mais pequeno detalhe, o melhor guia para tudo conhecer

Esta é a história, pequena embora, de um alguém que poderia ser qualquer um de nós. De conteúdo não será sobre a sua biografia, mas sobre o desencontro com a vida e finalmente, o encontro com o Pai:

De olhar cansado, tintado a cinzento, com o paladar saturado de tanto provar, papilas gastas na demanda do prazer alimentar, insaciado ansioso, tudo fazia por pôr travão a tanta procura: procura do sentido, de direção, procura da relação.

No escuro da busca desorientada, as dúvidas apareciam-lhe como fantasmas, os medos como labirintos que apontavam um caminho só, caminho único, um caminho longe, para estar perto daquilo que tinha medo de perder.

Agarrando-se àquilo que temia deixar, o olhar aguçado ao terreno, em posição, curvado sobre si mesmo, embrenhado, cada vez mais, nas histórias do seu umbigo. Tudo se esvaía por entre os dedos, como areia do deserto, e as certezas que punha no controlo da realidade, escorregavam pelas dunas até àquilo que tinha feito o seu tudo, se reduzir ao nada: perecível.

A repetição afugentava-o, procurando apenas experimentar o novo, de novo, de modo a saciar uma sede insaciável. As rotinas, as relações do dia-a-dia, as manhãs que colocam o seu peso nas pálpebras criando uma relação de rivalidade com o despertar, os mesmos percursos pautados pontualmente pelo trânsito, as tarefas de casa e do trabalho cujo sabor pesado o aterravam ao chão. Acima de tudo, cansado de si mesmo, das suas lutas, fragilidades que continuamente fazendo-o cair, no meio do seu desamor exigente, o exasperavam.

Tudo se esvaía por entre os dedos, como areia do deserto, e as certezas que punha no controlo da realidade, escorregavam pelas dunas até àquilo que tinha feito o seu tudo, se reduzir ao nada: perecível.

Já sem saber o que mais experimentar, depois de tudo ter provado, quando os seus diálogos internos, refletindo a parca liberdade que detinha, se resumiam à decisão sobre se comeria um pedacinho de chocolate ou o chocolate inteiro, este nosso alguém, por fim, desmontando da sua curvatura egocêntrica e voltando-se para Deus, num ato de socorro, pede-Lhe: “Mostra-me Senhor, mostra-me tudo de novo!”

E de olhos fechados, no sossego de uma sombra, não fugindo à intimidade do silêncio, reafirmando no seu coração “Só Tu sacias a minha sede”, ouve chamar o seu nome. Não havia espaço para dúvidas, só podia ser Ele. Havia algo de tão distinto, tão íntimo, tão verdadeiro nesse chamar; mais ninguém o conhecia de tal modo para o chamar assim: pela sua identidade, até ao mais profundo e ínfimo detalhe do seu ADN, até àquilo que não conhece em si.

Qualquer dúvida, medo ou confusão se dissipava, pois Aquele para o qual foi feito chamava-o e ele que procurava vida em lugares de morte, procurando preencher o vazio existencial de quem anda fugido ao convite a viver em profunda intimidade com o Pai, usando do frugal e findável do mundo para enganar esse vazio, era chamado à Vida e dispondo-se ao Pai, fazendo Ele tudo o resto, regressava Àquele que é a sua essência, a sua origem, o seu caminho.

De desencontro em desencontro, Deus abria-o à relação e agora via-se religado à Fonte da Vida. As cores abandonavam o pardo, o sabor ficava mais puro, e esse alguém, que poderia ser qualquer um de nós, finalmente sem sede, em tudo sentia o delicioso sabor de uma primeira vez.

No olhar de Deus deparou-se com a “arte do encontro” e, pedindo para estar perto desse olhar, foi experimentando o reencontro com tanto e tantos na sua vida que há muito não recebia com a alegria com que cada encontro merece ser acolhido.

Surge então a pergunta, uma vez terminada a história: mas porquê um conto para contar algo que poderia ser um testemunho? Talvez porque a distância permite-nos libertar das prisões em que nos pomos, dos hábitos e vícios com que olhamos a vida, revendo na terceira pessoa, histórias que se passam em nós. Pelo menos, assim acontece comigo.

Vinicius de Moraes no “Samba da Benção”  declama “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. E de facto, a ferocidade com que por vezes vivemos o mundo, esquecendo-nos de O levar para tudo, querendo sozinhos tudo experimentar e tudo ser, tudo ver e tudo possuir, por vezes até com gentis intenções de melhor “amar e servir”, leva-nos a procurar vida onde esta não existe, a buscarmos respostas em lugares onde não habita a verdade, conduzindo-nos a um cansaço pegajoso que em teia se estende às várias dimensões da nossa vida, saturando relações e criando aversão pelo que já foi provado, não regressando segunda vez ao mesmo sítio pois a referência é a novidade intocada. Mas, deixando que Deus nos liberte do medo da perda, ficando mais disponíveis para o que a Vida oferece, vamos aprendendo esta arte do encontro com o Pai, Ele que tudo criou e entende até ao mais pequeno detalhe, o melhor guia para tudo conhecer verdadeiramente pois tudo conhece.

Deixando que nos mostre tudo de novo, veremos novas todas as coisas, tornando-nos aos poucos, também nós capazes de acolher o outro com o mesmo olhar de espanto e encanto de um primeiro encontro.

Fotografia: Ashley Batz – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.