Em julho de 2016, tive a felicidade de fazer parte da equipa que pensou, planeou e dinamizou um encontro de quatro dias dedicado à promoção do diálogo inter-religioso e que juntou um conjunto de jovens de diferentes comunidades religiosas. Passados dois anos, encontro-me neste momento a animar o terceiro encontro deste tipo e a intensidade e o sentido destes dias não me permite escrever sobre outro assunto que não este: o do diálogo entre diferentes.
Num mundo e em sociedades cada vez mais polarizadas, o diálogo aparece como fundamental e urgente.
Num mundo e em sociedades cada vez mais polarizadas, o diálogo aparece como fundamental e urgente. Sempre o foi e sempre será, poderemos dizer… e com razão. Mas no aqui e no agora, no mundo e na sociedade em que vivemos, a questão do diálogo – ou da sua ausência – apresenta-se-me como uma questão-chave; arriscar-me-ia mesmo a dizer como “a” questão-chave, transversal e universal. Movimentamo-nos, viajamos e interagimos cada vez mais. Temos acesso a informação como nunca antes na história. Dependemos crescentemente uns dos outros. Mas, na realidade, continuamos longe e afastados dos nossos semelhantes, em alguns casos mesmo estando geograficamente próximos (em muitos casos, tão próximos que mesmo ao lado). Usamo-nos mais do que nos relacionamos. Nesta lógica dominante reina o (des)conhecimento superficial e preconceituoso; o julgamento fácil e desinformado; a falta de empatia; a incompreensão e o medo em relação à diferença.
Usamo-nos mais do que nos relacionamos. Nesta lógica dominante reina o (des)conhecimento superficial e preconceituoso; o julgamento fácil e desinformado; a falta de empatia; a incompreensão e o medo em relação à diferença.
A vontade de mudar
Procurando contrariar um certo inconsciente coletivo, do qual muitas vezes nos apropriamos, que nos diz que as pessoas, se nada acontecer em contrário, se inclinam naturalmente para fazer o bem – o que pode ser visto como uma visão otimista da natureza humana, mas também acaba por ser um lugar cómodo para se estar, um apaziguador de consciências face à nossa inércia em relação ao tanto que podemos fazer, mas cujo preço não apetece assim tanto pagar –, socorro-me do escritor libano-francês Amin Maalouf quando no seu livro Um mundo sem regras afirmou: “Reconciliar, reunir, adotar, moderar, pacificar são gestos voluntários, gestos de civilização que exigem lucidez e perseverança; gestos que se adquirem, que se ensinam, que se cultivam., diz: “Ultrapassar preconceitos e ódios não está inscrito na natureza humana. Aceitar o outro não é nem mais nem menos natural do que rejeitá-lo. Reconciliar, reunir, adotar, moderar, pacificar são gestos voluntários, gestos de civilização que exigem lucidez e perseverança; gestos que se adquirem, que se ensinam, que se cultivam. Ensinar os homens a viver juntos é uma longabatalha que nunca está completamente ganha. Requer uma reflexão serena, uma pedagogia hábil, uma legislação apropriada e instituições adequadas”. É esta uma das minhas “longas batalhas” – para além do trabalho a nível individual, numa busca de coerência (nem sempre conseguida) em relação à minhas atitudes e comportamentos pessoais, combato-a sobretudo através da educação, procurando gerar e animar processos de aprendizagem com vista a este fim de aprendermos a viver juntos; processos de aprendizagem que sensibilizem, mas, acima de tudo, promovam o contacto, o diálogo, a relação entre pessoas aparentemente distantes e que, em parte, não se compreendem.
Por onde não começar?
E como fazê-lo? Por onde começar? Talvez seja preferível pensar ao contrário: e por onde não começar? É que quase sempre começamos pelo errado: pelo que corre ou correu mal; pelas diferenças que não conseguimos compreender e muitas vezes nos assustam; pelas nossas certezas inabaláveis que queremos levar aos outros e das quais os queremos convencer; pelas características pitorescas e típicas que afastam mais do que aproximam. Esquecemos o essencial: os pontos de convergência, aquilo que nos une. Pode ser o bem estar social, a centralidade da família ou de outras pessoas próximas, um gosto comum, um receio partilhado, uma preocupação sobre o local onde se vive, uma religiosidade partilhada… A ideologia pode ser diferente, as perspetivas podem divergir, as religiões podem não ser as mesmas, mas estes pontos de convergência são o tesouros que temos de guardar e defender (mesmo que encontremos apenas um pequeno e frágil tesouro). Porque só daqui pode brotar o diálogo; só daqui é que se pode criar a base mínima de confiança e valorização entre um(uns) e outro(s) que permite dialogar e construir em conjunto. Sem pontos de convergência, o que se gera são apenas monólogos, mais ou menos agressivos, mais ou menos condescendentes, mais ou menos opressivos, mas sempre monólogos, sempre destrutivos.
Reconciliar, reunir, adotar, moderar, pacificar são gestos voluntários, gestos de civilização que exigem lucidez e perseverança; gestos que se adquirem, que se ensinam, que se cultivam.
Sublinhar o comum
Seguindo esta visão e estes princípios, temos planeado e animado estes encontros entre jovens de diferentes comunidades religiosas, propondo uma identidade comum assente na preocupação e vontade de se contribuir para um mundo melhor, mais justo e solidário, agenda que é abraçada com entusiasmo e dedicação pelos participantes, curiosamente (ou não) constatando-se que é exatamente a sua religiosidade a principal fonte desse interesse e vontade de contribuir para a mudança. Para além disso, o encontro realiza-se em regime residencial e procura-se que todos os momentos – os formais e os informais – possam ser momentos de convívio e inter-relação; muita inter-relação.
Talvez seja preferível pensar ao contrário: e por onde não começar? É que quase sempre começamos pelo errado: pelo que corre ou correu mal; pelas diferenças que não conseguimos compreender e muitas vezes nos assustam; pelas nossas certezas inabaláveis que queremos levar aos outros e das quais os queremos convencer;
Cria-se assim um ambiente propício àquilo que o grupo de jovens deste ano denominou de “honestidade intelectual”: o escutar o outro partindo duma curiosidade saudável e geradora sobre esse outro e sobre a sua essência, num ato de humildade que parte da consciência de que a diversidade é a base da criação e de que a visão e perspetiva do outro, mesmo não sendo a minha, tem um mesmo valor e me interessa muito saber. Escuta-se porque se valoriza e não porque se procura uma brecha na muralha para atacar ou porque somos tão bonzinhos (e superiores) que até condescendemos em ouvir os outros. Escuta-se porque se tem a sabedoria suficiente para não se acreditar em “histórias únicas”.
E os resultados, apesar do pouco tempo, têm sido surpreendentes. Apesar das diferenças que noutros contextos poderiam ser geradoras de incompreensão, afastamento e até rutura, nos diferentes grupos tem-se criado um nível de confiança e até de cumplicidade entre os jovens participantes que – nas suas palavras – lhes abre horizontes e lhes permite levar, no final daqueles dias, muitas boas surpresas na sua bagagem, as quais se sentem motivados para testemunhar e partilhar, junto das suas comunidades e mesmo com públicos mais alargados.
Dois anos depois, partilhando estes intensos quatro dias com o terceiro grupo de jovens, a impressão dos primórdios repete-se e reforça-se: proporcionar espaços e condições para o diálogo é fundamental; proporcionar espaços e condições para o diálogo entre pessoas com diferentes bases culturais é urgente; proporcionar espaços e condições para o diálogo entre pessoas de diferentes crenças e religiões é uma obrigação que faz todo o sentido.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.