7 cegueiras da nossa participação cívica

A nossa participação e dedicação cívica tem muitas cegueiras. Neste texto abordo sete delas, percorrendo cada uma delas mais como quem faz caminho do que como quem possui a solução.

Queixamo-nos frequentemente do estado da nossa política e sociedade civil. Mais da primeira do que da segunda, naturalmente, pois apontar o dedo aos políticos é mais confortável do que apontarmos a nós próprios.

A cultura política é fruto da sociedade onde se insere. Os políticos, os seus hábitos, bitolas, prioridades, virtudes e vícios não caem do céu; refletem e nascem numa sociedade específicos, num tempo e protagonistas concretos.

Portanto, à boa maneira bíblica, antes de apontar o dedo à trave que tapa o olho do nosso irmão, devemos olhar para o que cega o nosso próprio olho.

A nossa participação e dedicação cívica tem muitas cegueiras. Neste texto abordo sete delas, que me parecem ser as mais evidentes, ou talvez as que mais me afligem. Outros terão as suas, porventura muito mais malignas do que as que escolhi.

Proponho percorrer cada uma delas, mais como quem faz caminho do que como quem possui a solução, pois não apresento nenhuma.

 

1. Obsessão com o carreirismo meritocrático.

Estamos tão focados na nossa carreira, na nossa ascensão hierárquica e remuneratória, que tudo o que esteja relacionado com reflexões sobre o bem comum, a cidadania e a nossa participação é relegado para último lugar.

Esta cegueira encerra em si duas micro-cegueiras. A primeira, é a ideia de que aquilo que conquistamos é fruto do nosso mérito. Essa é a versão que tantas vezes contamos a nos próprios, sobre o nosso percurso e sobre o dos outros. A maioria das vezes não é verdade, nem de perto. Porque somos diferentes em dons e circunstâncias, o que condiciona e altera significativamente os nossos pontos de partida e de chegada. Sobre esta questão meritocrática, sugiro a leitura do recente artigo de Francisco Sarsfield Cabral, aqui no ponto SJ, que resume eloquentemente a tese de Michael Sandel na sua obra “A Tirania do Mérito”.

A segunda micro-cegueira que compõe esta cegueira é a obsessão com uma “carreira de sucesso”, baseada em critérios objetivos e inquestionáveis. Um sucesso unívoco, que nos torna a todos passageiros do mesmo comboio, de sentido e destino único. À chegada, muitos se reconhecem como rato a correr na roda.

Para tudo o resto, onde se inclui a participação na vida cívica, sobra pouco. Pouco tempo, pouca disponibilidade, pouca relevância. Só se consegue ser obcecado com uma causa de cada vez.

Curiosamente, ou não, os mais afetados por esta cegueira parecem ser aqueles que deveriam ter maior capacidade, intelectual e financeira, de a evitar. Escrevi recentemente sobre isso, aqui.

 

2. A falta de tempo e a praga “eficientista”

Vivemos o tempo da falta de tempo, ao qual se juntou o tempo da eficiência. Uma e outra andam de mão dada. Porque se há falta de tempo, convém ser eficiente no que se faz. Se se é eficiente, pode-se ocupar ainda mais a agenda, ao ponto de não sobrar qualquer tempo morto. E assim sucessivamente.

Nesta lógica, ninguém quer perder tempo com atividades ineficientes. É sinónimo de custos de oportunidade. Antes de nos comprometermos com o que quer que seja, queremos uma análise de risco, de resultados e de output. Temos pouco tempo, não o podemos desperdiçar.

Mas se há coisa ineficiente, é participar na vida comunitária, onde os processos não se mecanizam, a colaboração não automatiza, a criatividade não se prevê. Nada do que a compõe é controlável em termos de resultados, apenas de meios.

Por isso, requer tempo e paciência, tentativa e oferta, para se participar e, eventualmente, chegar a algum lado, política e socialmente falando.

Pensemos nas manifestações. Ou em escrever uma reclamação (justificada e construtiva.) Haverá fenómenos mais ineficientes e incertos do que estes? Tantas vezes se acaba com o mesmo com que se começou, deduzido o tempo investido. Mas terá sido tempo perdido? Não, a cidadania, a vida cívica e política não se medem em cálculos de eficiência e resultados. Entendem-se como participação num processo, impreciso, imprevisível e incalculável. Ser alérgico à ineficiência torna-nos intolerantes à boa cidadania.

 

3. O placebo das redes sociais

Partilhar conteúdos não se qualifica como participação cívica e política. Outra conversa seria produzi-los, sob o formato de podcast, páginas de redes sociais ou outros instrumentos. Mas partilhar, clicar em botões de reencaminhamento, fazer “retweets”, deixar “gostos” para aumentar a visibilidade, nada disto se qualifica como participação cívica.

No final do dia, é um exercício sobretudo egocêntrico, pois o enfoque não está em participar, mas em sinalizar aos outros que estamos a participar. Agimos como pombos-correios, sedentos de espalhar informação. A única diferença é que, ao contrário dos pombos, escolhemos a informação que carregamos. Mas daí a podermos considerar-nos autores ou contribuintes da nossa vida cívica, vai uma longa distância.

 

4. Viver em bolhas

Vivemos cada vez mais em bolhas, tanto virtual como fisicamente. Já todos sabemos – mesmo que não interiorizemos – o impacto dos algoritmos na formação das nossas perceções e relações.

No mundo físico, também as bolhas têm crescido, com o crescimento da desigualdade. As escolas públicas têm cada vez menos diversidade socioeconómica, os bairros estão cada vez mais segmentados por rendimento.

Sendo certo que nunca existiu uma vida de bairro comunitária perfeita, os seus traços têm desaparecido paulatinamente.

Ora, onde não há noção do todo nem contacto com o diferente, não há capacidade de colaborar e de confiar. Crescem os preconceitos, afunilam-se as convicções, destrói-se a confiança. E uma comunidade, sem confiança, não inspira nem agrega. Sem identidade coletiva, perdemos qualquer motivação para nos dedicarmos ao todo, à comunidade, à causa comum. Tornamo-nos fragmentados e fragmentários, desconfiados e dedicados a descobrir aquilo que nos divide, numa competição entre bolhas de sabão. E qualquer criança sabe o quanto o sabão cega os nossos olhos.

 

5. “Sobreconcentrar-se” nos seus

Não há nada mais admirável do que cuidar dos seus, da sua família, dos seus filhos e dos que nos são mais próximos. Mas não deve impedir-nos de contribuir para a nossa comunidade. Não sendo eu pai ou marido, abordo este ponto com redobrado cuidado. Confesso que observo com regularidade cidadãos que, após tempos de maior participação e dedicação à comunidade, substituem tudo isso por aquilo que, de fora, me parece uma sobreconcentração, ocupação e preocupação com os seus. Tanto quanto sei, na teoria, a família não deve substituir a participação comunitária, mas transformá-la e reforçá-la. Como disse, falo na teoria, e pode ser que venha a engolir este parágrafo daqui a uns anos.

 

6. Preconceito contra quem segue outros conceitos

Sobre quem pondera seguir outro conceito de carreira, de ocupação do seu tempo, de sucesso e de realização, recai uma espécie de preconceito e repúdio. Ninguém inventou essa doutrina, mas todos participamos mais ou menos nela. Inclui frases como “que perda de tempo”; “Coitado, está desorientado”; “tinha tanto potencial, que desperdício”; “ainda se vai arrepender”. Estas vozes brotam nas nossas relações, sobretudo as mais próximas, mas também na nossa cabeça. Alimenta-se das outras cegueiras, sobretudo do carreirismo meritocrático.

No momento das grandes decisões, é talvez o fator mais preponderante: o que vão pensar os outros, o medo de desiludir, o receio de falhar aos seus olhos e segundo os seus critérios. O medo de fazermos figura de parvos e da vida nos pregar alguma rasteira. Até podemos nem concordar com nada do que dizem, mas a força do seu olhar julgador, normalmente bem-intencionado, é capaz de nos cegar. E assim seguimos, bem-comportados e retos, centrados em nós e nos nossos.

 

7. Um tempo desinspirado e desanimado

Há um certo desalento no ar que respiramos. Uma mistura de sempre-foi-assim-tismo com isto-está-pior-do-que-nunca.

Não se vislumbra um horizonte capaz de inspirar. Falta-nos ânimo e fôlego. Vamos ao sabor do vento, cada um fazendo a sua vidinha, providenciando para os seus e pouco mais. Não é uma cegueira portuguesa, porque está espalhada um pouco por todo o mundo ocidental.

Parece-me ser a cegueira mais urgente de abordarmos. Não só pelo seu carácter internacionalista, mas sobretudo por estar na raiz de todas as outras: porque quem tem ânimo e visão encontra forças e tempo; desmultiplica-se e reinventa-se, na família e fora dela; liberta-se do eficientismo, confia nos processos; conhece e dá-se a conhecer; não teme a diferença, alimenta-se dela; escuta os outros, mas não dispõe da construção do seu próprio caminho.

O espírito dominante atual parece distante desta descrição. Mesmo os mais ativistas vociferam um discurso fatalista e derrotista.

Bem sei que escrevi que não apresentava soluções, mas não posso deixar de sublinhar o quão urgente me parece enfrentarmos esta última cegueira.  Precisamos de projetos agregadores e inspiradores, que nos inspirem a construir. O quê ao certo, não temos (nem devemos) saber logo à partida. Mas temos de recuperar a nossa capacidade de ser sentinelas da aurora. Tudo mais virá, a começar pela visão.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.