2.240.000.000.000

Olhando para o século XX e as suas guerras mortíferas, é preciso tudo fazer para que 1914 não se repita, recusando o que recusou Karl Kraus, o jornalista e escritor satírico austríaco: “Sempre em frente, rumo à glória, marchamos!”.

O número que acabou de ler não lhe dirá certamente nada. Mas se o escrevermos de forma abreviada, 2 240 biliões, e juntarmos o $ (para indicar dólares norte‑americanos), todos os que se interessam pelas questões da guerra e da paz logo se lembrarão que se trata do valor mundial das despesas militares em 2022 (segundo dados disponibilizados pelo Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo, mais conhecido pela sua sigla em inglês – SIPRI).

Sendo um número gigantesco, para fazer sentido, se não formos especialistas financeiros, importa dizer que é o equivalente a mais de sete vezes o valor anual de todos os bens e serviços produzidos em Portugal – o Produto Interno Bruto na terminologia económica. Podemos também compará-lo com o que o mundo gasta em Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD). Se consultarmos a informação disponibilizada pela União Europeia, [1] o valor anual da APD não chega aos 200 mil milhões de dólares, ou seja menos de três vezes o que os Estados Unidos gastam com armas num único ano.

Podemos também compará-lo com o que o mundo gasta em Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD). Se consultarmos a informação disponibilizada pela União Europeia, o valor anual da APD não chega aos 200 mil milhões de dólares, ou seja menos de três vezes o que os Estados Unidos gastam com armas num único ano.

Se aos gastos militares contabilizarmos a existência de mais de 12.500 armas nucleares, suficientes para assegurar o holocausto atómico, compreende-se a indignação do Papa Francisco, a 24 de março de 2022, no encontro com as mulheres do Centro Feminino Italiano, em Roma, quando nos disse que ficou “envergonhado quando li que um grupo de Estados se comprometeu a gastar dois por cento do PIB na compra de armas, como resposta ao que está acontecendo agora. Loucura! A verdadeira resposta, como disse, não são outras armas, outras sanções, outras alianças político‑militares, mas outra abordagem, uma forma diferente de governar o mundo”. [2]

Se aos gastos militares contabilizarmos a existência de mais de 12.500 armas nucleares, suficientes para assegurar o holocausto atómico, compreende-se a indignação do Papa Francisco, a 24 de março de 2022, no encontro com as mulheres do Centro Feminino Italiano, em Roma, quando nos disse que ficou “envergonhado quando li que um grupo de Estados se comprometeu a gastar dois por cento do PIB na compra de armas, como resposta ao que está acontecendo agora. Loucura! A verdadeira resposta, como disse, não são outras armas, outras sanções, outras alianças político‑militares, mas outra abordagem, uma forma diferente de governar o mundo”.

O momento que vivemos é da maior gravidade. Esta corrida às armas, num mundo já armado “até aos dentes”, coloca na ordem do dia o próprio fim da história. Não no sentido dado em 1992 por Francis Fukuyama em O Fim da História e o Último Homem mas como decorrente da extinção da humanidade. Ao colapso ambiental para o qual caminhamos em passo acelerado, alimentando e alimentado pela crise socioambiental, aprofundadamente analisada por Francisco na carta encíclica Laudato Si’, e aos riscos decorrentes da inteligência artificial, junta-se novamente a ameaça da guerra atómica. Tendo Hiroshima aberto a possibilidade do aniquilamento geral súbito da humanidade, esta janela para o futuro comum trágico está hoje, com a guerra na Ucrânia, eventualmente ainda mais aberta do que na crise dos mísseis em Cuba (1962).

Tendo Hiroshima aberto a possibilidade do aniquilamento geral súbito da humanidade, esta janela para o futuro comum trágico está hoje, com a guerra na Ucrânia, eventualmente ainda mais aberta do que na crise dos mísseis em Cuba (1962).

Considerando o impasse em que a guerra se encontra desde há largos meses, calar as armas para dar a voz à diplomacia é a única saída para assegurar a preservação da vida humana, paralisando o contador da morte. Não sendo despiciente evocar o mandamento “não matar” que fixa um limite indiscutível para garantir o valor da vida humana, como bem sublinhou Francisco no Evangelii Gaudium, tanto mais relevante quando o número de mortos na Ucrânia certamente já superou largamente a fasquia das cem mil vítimas, é inadiável substituir o belicismo por uma razão realista. Por isso o cessar-fogo imediato para dar lugar a negociações de paz entre os beligerantes, incluindo os Estados Unidos e a China, é não apenas um imperativo moral mas também uma expressão de realismo político.

Mas o que quer dizer realismo político? Convocando o sociólogo alemão Max Weber e o seu conhecido texto O político como vocação (1919), Fabian Scheidler, num artigo recente no CTXT espanhol, sugere que é necessário priorizar a “ética da responsabilidade” (Verantwortungsethik). Tal permitirá que a ação política tome em consideração as consequências das suas escolhas, valorizando o cálculo minucioso dos eventuais efeitos das decisões tomadas, privilegiando a procura de resultados positivos. Quer dizer, avaliar a situação tomando em consideração os interesses e motivações das diferentes partes em confronto, admitindo como possibilidade que prosseguir com o conflito poderá conduzir à guerra nuclear, ou seja, à catástrofe geral, aliás já sinalizada de modo muito expressivo por John Mearsheimer na Foreign Affaires. Olhando para o século XX e as suas guerras mortíferas, é preciso tudo fazer para que 1914 não se repita, recusando o que recusou Karl Kraus, o jornalista e escritor satírico austríaco: “Sempre em frente, rumo à glória, marchamos!”.

Tal implica uma mudança na posição política, colocando no centro da ação pragmatismo suficiente para reconhecer que a defesa da guerra a qualquer preço tem como consequência mínima garantida a acumulação de mortos e estropiados e a continuação da devastação de um país. Mais, se não formos bem-sucedidos na concretização do cessar-fogo, diante de nós anuncia-se uma guerra mundial de alta intensidade, certamente a última. E com ela um futuro sem humanidade, pois trata-se precisamente de constatar o inevitável: o fim da história humana.

Se o cessar-fogo se impuser, dando espaço e tempo à diplomacia para tecer os compromissos para assegurar uma paz justa e duradoura – móbil da visita recente a Kiev do cardeal Matteo Zuppi, enviado do Papa Francisco –, o debate sobre as causas da guerra poderá (e deverá) continuar. Beneficiando do sossego que a paz nos proporcionará, teremos tempo para se confrontar os valores morais mas sobretudo os interesses que justificaram uma forma concreta de necropolítica, isto é de política da morte, com o que Francisco nos tem dito sobre as causas fundas da guerra, nomeadamente na conversa com os diretores das revistas culturais europeias dos jesuítas (publicada no n.º 195, de 2022, da revista Brotéria) e na entrevista ao jornal espanhol ABC (publicada em 18 de dezembro de 2022).

Beneficiando do sossego que a paz nos proporcionará, teremos tempo para se confrontar os valores morais mas sobretudo os interesses que justificaram uma forma concreta de necropolítica, isto é de política da morte, com o que Francisco nos tem dito sobre as causas fundas da guerra, nomeadamente na conversa com os diretores das revistas culturais europeias dos jesuítas (publicada no n.º 195, de 2022, da revista Brotéria) e na entrevista ao jornal espanhol ABC (publicada em 18 de dezembro de 2022).

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.