O que tem Nossa Senhora a ver com Santo Inácio?

Nossa Senhora está assim ligada a três dimensões essenciais da vida de Inácio: afeto, pobreza, obediência. Mas Inácio sabe que Maria é a mediadora e intercessora de uma graça que vem do Pai.

Nossa Senhora está assim ligada a três dimensões essenciais da vida de Inácio: afeto, pobreza, obediência. Mas Inácio sabe que Maria é a mediadora e intercessora de uma graça que vem do Pai.

Quem se aproxima da Companhia de Jesus e dos jesuítas nem sempre vislumbra com clareza qual o lugar de Nossa Senhora no caminho de conversão de Santo Inácio de Loiola e, consequentemente, na Espiritualidade Inaciana. Mas o certo é que a Mãe de Jesus está presente em vários momentos marcantes da vida de Inácio e também no grande legado espiritual que deixou à Igreja: os Exercícios Espirituais.

O tempo em que celebramos o Natal é um momento oportuno para revisitar esta relação tão peculiar. Mas, para que entrar nesta relação seja também um tempo de oração, comecemos por escutar uma música cheia de ternura, A canção que Nossa Senhora cantou ao menino a primeira vez que ele chorou.

Como é que Jesus cresceu na vida de Santo Inácio, como é que Ele queimou, ardeu no seu centro? E que teve Nossa Senhora a ver com isso?

Antes de tudo, há que reconhecer que Nossa Senhora fazia parte da paisagem familiar, local, cultura e espiritual de Santo Inácio. Por outro lado, há que recordar que quando falamos da conversão de Santo Inácio não nos referimos a uma passagem de não crente a crente. O que acontece é que Inácio de Loiola passa por um processo através do qual Deus muda a orientação do seu coração. Deus foi transformando o modo de amar, esperar e confiar de Inácio. Transformou os seus laços, mudou o horizonte da sua esperança, ofereceu-se a Inácio como o seu ponto de apoio. Desse modo Inácio tomou consciência que a História da Salvação o implicava, como destinatário e colaborador. O sentido da sua vida seria encontrado no deixar-se salvar (amar) por Deus e no ser ponte do desejo de Deus de que todos sejam salvos, de que todo se deixem amar por ele.

Antes de tudo, há que reconhecer que Nossa Senhora fazia parte da paisagem familiar, local, cultura e espiritual de Santo Inácio.

Neste caminho, Nossa Senhora tem uma importância particular. Não se trata de fazer dela a quarta pessoa da Santíssima Trindade, mas de compreender a singularidade do seu lugar como intercessora e mediadora.

A conversão dos laços

Recuemos então a 1521. No momento em que está a começar a aprender a olhar para o que se passa dentro de si, Inácio tem aquela que pode ser considerada a sua primeira grande experiência mística (agosto-setembro de 1521). Ele próprio a descreve na sua autobiografia:

Estando uma noite desperto, viu claramente uma imagem de Nossa Senhora com o santo Menino Jesus, com a qual recebeu, durante bastante tempo, uma grandíssima consolação, e ficou com tal asco de toda a vida passada, e especialmente de coisas da carne, que lhe parecia terem desaparecido da alma todas as imagens que antes nela tinha impressas. Assim, desde aquela hora até ao mês de agosto de 53, em que isto se escreve, nunca mais teve nem o mínimo consentimento em coisas da carne.” (Autobiografia, 10)

Com esse voto Inácio descentra-se no seu modo de amar. Aprende com Maria que Deus é a fonte de todo o Amor.

Uns meses mais tarde (fins de fevereiro de 1522), responderia a esta graça fazendo voto de castidade. Com esse voto Inácio descentra-se no seu modo de amar. Aprende com Maria que Deus é a fonte de todo o Amor. Esse amor queima em Inácio a tentação da posse do outro, de reduzir o outro às suas necessidades e ao seu sonho de conquistar uma dama nobre. Pela castidade, Inácio descobre como pode amar livremente.

A castidade como voto religioso não é para todos, mas o amar livre e gratuitamente é certamente para todos: o não querer que o outro se reduza às nossas necessidades, sonhos ou expectativas. Desejar fazer da vida um contínuo ato de entrega para bem dos outros.

Pela autobiografia sabemos que Inácio, depois desta primeira visão de Nossa Senhora, não se atreve a garantir que esta experiência tenha sido iniciativa de Deus. Mas, ao mesmo tempo, reconhece o facto de que quem vivia com ele ter notado uma grande transformação na sua vida depois deste momento. Com isto, ajuda-nos a compreender como o olhar dos outros sobre nós pode ser importante no nosso discernimento, como os outros nos podem ajudar a reconhecer os frutos da ação de Deus na nossa vida e a tomar consciência se é livre o nosso modo de amar.

A pobreza como novo horizonte de esperança

Não foi apenas na transformação dos seus laços que Nossa Senhora acompanhou Inácio. Acompanhou-o também quando se iniciou a descoberta progressiva de um horizonte diferente para a sua esperança. O Santo de Loiola desejara ser cavaleiro e era nos bens sociais e também económicos que daí viessem que colocava a sua esperança. Mas, já depois do seu tempo de convalescença e sendo já peregrino, podemos perceber que este horizonte mudou. Em Monserrate, preparando uma velada de armas diante de Nossa Senhora, despoja-se das suas vestes, oferece-as a um pobre e veste-se de saco. Começa assim o reconhecimento de si mesmo como sendo pobre diante de Deus. Um pobre que deseja ser um amigo próximo dos pobres.

Na véspera de Nossa Senhora de Março (era assim chamada a festa da Anunciação que já então se celebrava a 25 de Março), de noite, no ano de 22, foi ter com um pobre, o mais secretamente que pôde, e despojando-se de todos os seus vestidos, deu-os ao pobre, e vestiu-se do seu desejado vestido e foi prostrar-se de joelhos diante do altar de Nossa Senhora e, umas vezes de joelhos, outras de pé, com o seu bordão na mão, passou [ali] toda a noite.” (Autobiografia 18)

Não foi apenas na transformação dos seus laços que Nossa Senhora acompanhou Inácio. Acompanhou-o também quando se iniciou a descoberta progressiva de um horizonte diferente para a sua esperança.

Inaugura-se aqui um modo transformado de Inácio se relacionar com os bens e com os pobres. Anos mais tarde, quando está a discernir o modo como a pobreza deve ser vivida na Companhia de Jesus, Nossa Senhora está presente nessa luta interior, ajudando Inácio a ler a suas moções. (Cf Diário Espiritual, 35)

Para Inácio e para quem segue a vida religiosa, a pobreza é assumida como parte da sua identidade, expressando-se num voto feito diante de Deus. Mas ter Deus e os seus bens como a nossa verdadeira esperança é um convite feito a cada discípulo de Jesus, a cada cristão. Viver para o prestígio ou com o desejo de acumular bens não realiza os anseios mais profundos do ser humano. É pelo serviço e pela partilha que nos colocamos a caminho da fonte.

Colocar a confiança em Deus

Acompanhado por Maria, Santo Inácio vai deixando que Deus transforme os seus afetos e o seu modo de esperar. Mas o antigo cavaleiro pede mais à mãe de Jesus. Pede-lhe que o “ponha com o Seu Filho”. E pede-o com insistência:

Tinha determinado, depois de ordenado sacerdote, estar um ano sem dizer missa, preparando-se e rogando à Virgem que o quisesse pôr com o seu Filho. E estando um dia, a algumas milhas antes de chegar a Roma, numa igreja, fazendo oração, sentiu tal mudança na sua alma, e viu tão claramente que Deus Pai o punha com Cristo, seu Filho, que não lhe seria possível duvidar disto, senão que Deus Pai o punha com seu Filho.” (Autobiografia 96)

Inácio deixa de viver a vida a partir do ideal da conquista, para vivê-la a partir da consciência do dom e depois de perdido mais um sonho, o sonho de ir a Jerusalém, coloca-se numa atitude de confiança e liberdade diante de Deus. Uma abertura que o levaria juntamente com os seus companheiros a colocar-se ao serviço da Igreja e a fundar a Companhia de Jesus. Quem melhor do que Maria para o acompanhar? Ela que nunca deixa de ser agradecida, de viver como serva e de confiar em Deus.

Nossa Senhora está assim ligada a três dimensões essenciais da vida de Inácio: afeto, pobreza, obediência. Mas Inácio sabe que Maria é a mediadora e intercessora de uma graça que vem do Pai:

Enquanto preparava o altar e depois de me paramentar e durante a Missa [recebi] moções interiores muito intensas e muitas e intensas lágrimas e soluços (…) e depois [recebi] a visão clara de Nossa Senhora, muito propícia ante o Pai, de tal modo que nas orações ao Pai, ao Filho e na Consagração, não a podendo ver ou sentir senão como participante ou porta de tanta graça que sentia no meu espírito.” (Diário Espiritual 31)

E quem faz Exercícios Espirituais?

Os Exercícios Espirituais são, em grande parte, plasmados a partir da experiência de Deus vivida por Inácio. É a partir dessa experiência que Inácio ajuda outros a encontrarem Deus em todas as coisas. Tendo Maria tido um papel importante nessa experiência, é natural que a encontremos também no desenrolar do caminho espiritual proposto por Inácio. Tal como na vida de Inácio, Maria está presente como intercessora para que o nosso coração se converta. Para que se convertam os nossos laços, a nossa esperança e confiança. E convém recordar que, partindo da inspiração bíblica, o coração é bem mais que o lugar das emoções. É o lugar onde a vida nos toca, onde passamos pela dúvida e pelo questionamento, onde experimentamos a luta interior, discernimos e decidimos. Como Maria que tudo ponderava no seu coração.

Tal como na vida de Inácio, Maria está presente como intercessora para que o nosso coração se converta. Para que se convertam os nossos laços, a nossa esperança e confiança.

Vimos que no seu caminho de conversão Santo Inácio tomou consciência de si mesmo como destinatário e colaborador da História de Salvação. Quem se dispõe a fazer Exercícios Espirituais entra num caminho de identificação com Jesus e, nessa identificação, é convidado a encontrar a vontade do Pai para a sua vida. Uma descoberta que é feita a partir da relação com um Deus que nos ama, cria e salva continuamente. E assim se faz a experiência de entrar na História da Salvação. Cada pessoa deixa de ser mera espectadora para se tornar participante, destinatária e colaboradora da Missão de Jesus de reconciliar o mundo com o Pai.

Mas qual é o papel de Maria neste caminho?

Com honestidade, há que reconhecer que há um paralelo entra a presença discreta de Nossa Senhora no Evangelho e nos Exercícios Espirituais. Num e noutro lugar, essa presença é tão discreta como marcante. A primeira aparição significativa de Maria  nos Exercícios Espirituais dá-se no colóquio relativo à meditação do pecado. Quem faz os EE pede-lhe ajuda para tomar consciência da condição de pecador, reconhecendo o que o desumaniza para poder ordenar laços e afetos, sabendo-se amado por Deus. (Cf. EE 63)

Um pouco mais adiante, escutando um apelo ao seguimento de Jesus, através da parábola inaciana do chamamento do rei, aparece o convite, como fez Inácio na sua velada de armas, a colocar-se numa atitude de entrega, despojamento e pobreza diante de Maria e de toda a corte celestial. A mãe de Jesus encarna a atitude de escuta e diligência que se pede como graça quando se faz uma oração a partir dessa parábola: “Pedir graça a nosso Senhor para que não seja surdo ao seu chamamento, mas pronto e diligente em cumprir sua santíssima vontade.” (EE 91)

Um pouco mais adiante, na meditação das duas bandeiras, tal como Inácio pediu a Maria que o pusesse com o Seu filho, abrindo-se à escuta da vontade de Deus, também o exercitante pede para ser recebido debaixo da bandeira de Jesus através da intercessão de Maria.

Um pouco mais adiante, na meditação das duas bandeiras, tal como Inácio pediu a Maria que o pusesse com o Seu filho, abrindo-se à escuta da vontade de Deus, também o exercitante pede para ser recebido debaixo da bandeira de Jesus através da intercessão de Maria.

Sem perder a sua forma discreta de agir, Maria aparece ainda de modo peculiar noutros momentos do caminho dos Exercícios Espirituais. De um modo muito subtil, Inácio convida-nos a trazer à memória a liberdade de Maria diante da vontade de Deus, quando nos convida a considerar a despedida entre Maria e Jesus em Nazaré (EE 273). Curiosamente este modo de apresentar a liberdade de Maria aparece no contexto em que o exercitante deve começar a considerar o que deve eleger para cumprir a vontade de Deus (Cf. EE 158, 163 e 273). Esta liberdade de Maria face à vontade do Pai expressa-se no modo como acompanha Jesus no caminho da paixão até ao momento em se recolhe em soledade na casa para onde vai depois de Jesus ser sepultado (EE 208). Seguindo a intuição do livro que tinha lido sobre a Vida de Cristo no tempo de convalescença, da autoria de Ludolfo de Saxónia, Santo Inácio considera também que ainda que o Evangelho não o mencione, a primeira aparição de Jesus ressuscitado foi à sua mãe: “a escritura supõe que nós temos entendimento”. (EE 299)

E agora nós

Como com Inácio, Maria pode acompanhar-nos no caminho da conversão do nosso coração, dos nossos laços, da nossa esperança e da nossa confiança. Inácio expressou através dos votos próprios da vida religiosa: castidade, pobreza e obediência. Cada cristão pode expressá-lo no modo como acolhe os dons da caridade, da esperança e da fé oferecidos gratuitamente por Deus. E pode também contar com a intercessão de Maria que acompanha o crescimento de Jesus em cada pessoa e no mundo.

Como podemos estar atentos para que Jesus cresça em nós e à nossa volta, permitindo que todos se experimentem como filhos e filhas amadas, parte da História da Salvação, de um reino de paz e justiça? Talvez possamos imaginarmo-nos, como propõe Inácio na contemplação do presépio, como um pequeno servo que ali está disponível para servir e assim responder a estas perguntas.

A primeira Igreja da Companhia de Jesus no mundo foi dedicada a Nossa Senhora da Estrada a quem Santo Inácio tinha especial devoção. Peçamos então que ela possa ser para nós estrada para Jesus, porta pela qual Ele entra na nossa vida.

Abriste o teu coração
Cresceu em ti o céu
Mistério tão profundo
O Criador do mundo
Faz-se Filho teu

Põe-me com teu Filho
Na vida a percorrer
Sê tu o meu caminho
Meu colo, meu abrigo
Porta para o céu

Senhora da Estrada
Que vai para a Jesus
Nasça em mim a tua Luz
Conclusão breve: porquê tão despercebida?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.