O meu caminho de santidade

Ser mãe deve ser o menos enigmático caminho de santidade. Deus deu-nos as pistas todas, mostrou-nos o modelo - Maria - e ofereceu-nos os melhores mestres - os nossos filhos. E assim nos ensinou a amar e a ensinar amar.

Ser mãe deve ser o menos enigmático caminho de santidade. Deus deu-nos as pistas todas, mostrou-nos o modelo - Maria - e ofereceu-nos os melhores mestres - os nossos filhos. E assim nos ensinou a amar e a ensinar amar.

É uma sorte poder servir quem mais amamos. Por isso, quando me dizem que ter filhos é uma prova de coragem, fico muda. Não sei explicar que não é: soa sempre a falsa modéstia. É, é. Eu sorrio e a conversa fica por aqui. Os filhos não são resultado de coragem, não podem ser. No outro dia, disseram-me a propósito do tema arriscar que “quem tem seis filhos não tem medo do futuro”. Espera, não tinha pensado nisso assim. Medo do futuro? E comecei a pensar nele, em tudo o que pode acontecer aos meus filhos, em todas as tragédias que podem atravessar a minha vida. E se os perder? E se lhes faltar? É isto o medo. O medo do sofrimento pelos filhos, que não deve haver maior, o medo que eles sofram. Medo daquilo que ainda não aconteceu e que pode acontecer no futuro. É o inferno na terra, portanto. Mas como é que se consegue viver assim? O medo é o que mais nos afasta de Deus, é aquilo que não nos deixa viver, amar, ter esperança e experimentar alegria. É viver a olhar por cima do ombro desconfiados com amanhã, com o amanhã dos nossos filhos. Na verdade, o medo é o sintoma de que achamos que nos bastamos, que estamos sós. Mas medo de amar para não sofrer dá resto zero, dá zero. É paralisante. E por isso é que ter filhos não é prova de coragem mas de vida. Ter filhos é um sinal de vida, só isso – não é pouco, mas é apenas isso. É aceitar uma missão de Deus que vem embrulhada numa trouxa, ou é aceitar a vida, apenas.

Os filhos são o presente de Deus para nos ensinar a amar, a ter esperança, confiança e alegria. É o que nos abre caminho para santidade, um caminho cheio de lanternas, de sinais de trânsito, de ajuda. Um caminho onde está tudo indicado, sem enigmas. Maria ensinou-nos isso. Ensinou–nos como ia “guardando tudo no seu coração”. Tudo. Os sorrisos, as dúvidas, as tristezas, os sofrimentos, os medos e como, com eles, ia seguindo, o caminho. Com filhos não precisamos sair de casa para irmos gravando tudo no nosso coração e seguir o caminho. Os filhos são uma das formas que Deus tem de nos fazer responder que Sim sem reservas de um futuro que está cheio de incertezas.

Brincamos a Deus quando temos filhos. Damos sem esperar receber, perdoamos sem condições, experimentamos o que é a verdadeira liberdade e amamos apenas desejando a felicidade do outro. E sofremos, claro que sim. Sofremos por eles e por nós.

Inês Teotónio Pereira

Brincamos a Deus quando temos filhos. Damos sem esperar receber, perdoamos sem condições, experimentamos o que é a verdadeira liberdade e amamos apenas desejando a felicidade do outro. E sofremos, claro que sim. Sofremos por eles e por nós. Sofremos quando estamos sós, sofremos quando não nos reconhecem, sofremos quando eles sofrem e sofremos por falta de sono, cansaço, medo de cada doença, de cada choro e da ignorância do futuro. E sofremos principalmente quando nos falta a esperança e a alegria se desvanece. E é fácil. Nem sabem como é fácil perder o norte quando entramos numas urgências pediátricas, como é fácil duvidar da nossa vocação quando as notas não sobem e ficar numa tristeza profunda quando, do lado de lá, o silêncio ensurdecedor cria um fosso entre nós, entre a nossa vida e a deles. Sofremos quando não sabemos o que eles pensam por detrás de um olhar vago, quando o telemóvel e o computador os levam do nosso colo.  Sofremos e duvidamos, primeiro de nós e depois de Deus. Duvidamos que o tempo venha responder às nossas dúvidas e dissipar os nossos receios, duvidamos que Deus goste mais deles que nós, que esteja sempre de vigia. Achamos que a luta é só nossa, que a missão é só nossa. Achamos que nos bastamos. Sofremos quando perdemos a paciência, a paciência com Deus.

Ser mãe é imitar Maria. Não há outra maneira, imitar o seu sofrimento e as suas dúvidas e como as neutralizar. Um dia o meu pai entrou na sala e trazia na mão o recorte de uma fotografia de uma mãe num campo de refugiados num estado de pobreza extremo a dar de mamar a um bebé que lutava contra a morte. “Esta é Nossa Senhora”, apontou ele. E pregou a fotografia na parede por baixo do crucifixo. E ali ficou ela, a incomodar-nos com o seu olhar sereno a alimentar o filho que vivia por milagre. A amar serenamente apesar do caos. Cresci com ela, com esta mãe, a olhar para mim.

Mas são os nossos filhos que nos ensinam a ser como Maria. Foi com eles que aprendi a perdoar. Não por mérito meu, mas porque está gravado no coração de qualquer mãe perdoar sempre aos seus filhos. Brincamos a Deus quando temos filhos: eles erram, mentem, são injustos e preguiçosos e a nós só nos resta perdoar. Pedir que façamos justiça com os nossos filhos é uma violência. E nós, mães, não somos justas, não queremos nem podemos ser justas. Nós não nos vingamos, não os dobramos, não guardamos rancor; só queremos mais uma desculpa para os pegar ao colo e sermos mães. Para termos misericórdia e piedade, para brincar a Deus. Repreendemos, ofendemo-nos, mas perdoamos sempre. A nossa casa, o nosso coração, é onde eles podem recomeçar. O amor ao próximo começa aqui e assim.

Gravamos também no nosso coração o que é a liberdade. A verdadeira liberdade, aquela que nos dói, que nos dobra o orgulho. A liberdade de os deixar ser como eles são, de não os moldar à nossa vontade, à moda, ao que achamos que deve ser, aos sonhos que idealizamos

Inês Teotónio Pereira

Gravamos também no nosso coração o que é a liberdade. A verdadeira liberdade, aquela que nos dói, que nos dobra o orgulho. A liberdade de os deixar ser como eles são, de não os moldar à nossa vontade, à moda, ao que achamos que deve ser, aos sonhos que idealizamos. A liberdade de os deixar errar, de os deixar escolher e de os deixar ser eles próprios, de os largar. Não há maior prova de amor que largar a mão e confiar.

Fugir do medo. É este o desafio das mães. Do medo que está sempre à espreita no nosso coração, do medo do que “vai ser deles” ou de não conseguir, de quebrar. De duvidarmos de nós e depois de Deus. Os nossos filhos são templos vivos do Espírito Santo e a nós cabe-nos essencialmente não estragar o embrulho. É quase só isso. A nós cabe-nos abraçar em cada momento como se fosse último ou o primeiro e assim ensiná-los a amar; amar apesar do caos, das dúvidas e da falta de forças. É isso que Deus espera de nós., que saibamos abraçar assim como a mãe da fotografia do meu pai abraçava o bebé, como Nossa Senhora, e guardar cada momento no nosso coração. Ser mãe deve ser o menos enigmático caminho de santidade: é só ligar o GPS, o nosso coração, que os nossos filhos tratam do resto.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.