Deixar cair as máscaras, receber as cinzas

É neste olhar novo sobre a renúncia e a liberdade, a oferta e a partilha, o silêncio e a relação, que se começa a transformar o coração.

É neste olhar novo sobre a renúncia e a liberdade, a oferta e a partilha, o silêncio e a relação, que se começa a transformar o coração.

Com a Quarta-Feira de Cinzas damos início à Quaresma. O horizonte deste tempo litúrgico é o grande Mistério da morte e ressurreição de Jesus que celebraremos na Páscoa. É para lá que caminhamos e é aí que definimos as coordenadas da nossa viagem. Santo Inácio de Loyola diria que a celebração de hoje é o “princípio e fundamento” dos 40 dias que nos preparam para a Pascoa do Senhor e nos colocam em exercício de conversão da vida a partir de Deus.

O elemento que marca a celebração deste dia é a imposição das cinzas. Ontem colocávamos as máscaras de Carnaval e a verdade é que, muitas vezes, nunca as chegamos a tirar! São as máscaras que usamos no dia-a-dia diante dos nós mesmos, dos outros e também diante de Deus, atrás das quais escondemos medos, inseguranças e fragilidades. Quando, no dia 20 de maio de 1521, Iñigo de Loyola perdia a grande batalha da sua carreira, ferido por uma bala de canhão, começava aí o seu trabalho interior de desmascarar a sua imagem de cavaleiro invencível para dar início a uma vida nova em Cristo. A ferida na perna ecoou na vida deste soldado como as palavras que acompanham o gesto da imposição das cinzas: «Lembra-te que és pó da terra e à terra hás-de voltar”. Hoje somos também chamados a tirar as máscaras do orgulho, da auto-suficiência e da aparência para nos vermos como somos na realidade: criaturas frágeis e mortais.

Quando, no dia 20 de maio de 1521, Iñigo de Loyola perdia a grande batalha da sua carreira, ferido por uma bala de canhão, começava aí o seu trabalho interior de desmascarar a sua imagem de cavaleiro invencível para dar início a uma vida nova em Cristo.

Impor as cinzas na cabeça invoca em nós a experiência da finitude da vida humana. Tocamos a consciência da nossa própria fragilidade, da nossa pequenez e a consciência de que só em Deus temos a porta segura para a vida que não tem fim. A invasão da Ucrânia pela Rússia e a incerteza da dimensão que este conflito bélico traz um reconhecimento ainda maior dos nossos limites e lembra-nos quem somos mesmo pó, criaturas vulneráveis. Mas é na fraqueza que se revela a força de Deus, como diz São Paulo, e o que estamos a viver pede-nos para agarrarmos o mundo na sua fragilidade para o reconstruirmos a partir do olhar em Cristo.

Os meios que a Igreja nos propõe para a conversão interior encontram-se na Liturgia da Palavra desta Quarta-feira de Cinzas: jejum, esmola e oração. São propostas apresentadas por Jesus como exercícios práticos de quem vai a um ginásio para se pôr em forma na vida espiritual. O jejum desafia-nos a centrarmo-nos no essencial e a renunciar ao secundário. Consumimos muitos bens, imagens, ruídos, e o jejum educa a nossa vontade para a liberdade. A par do tradicional jejum de alimento, devemos fazer jejum de excesso de tempo passado nas redes sociais para estarmos fisicamente mais uns com os outros, de tanto cuidado com a própria imagem para olharmos mais para a comunhão, de híper-activismo para aprender a viver mais devagar. De seguida, a esmola desafia-nos a partilhar os bens que temos e que chamamos “nossos” para aprender a partilhar o que temos em excesso, mas sobretudo o que até nos faz falta, mas é essencial para alguém. A esmola torna-nos solidários e sensíveis aos mais pobres, pede reconhecimento das necessidades de quem mais sofre e compromisso em caminhamos todos juntos. Por fim, a oração desafia-nos a sintonizar mais com Deus, a afinar os critérios com que decidimos na vida a partir dos critérios do Evangelho e a crescer na amizade com Jesus. É neste olhar novo sobre a renúncia e a liberdade, a oferta e a partilha, o silêncio e a relação, que se começa a transformar o coração. Como posso jejuar, dar esmola e rezar melhor?

Na imposição das cinzas e nos exercícios quaresmais aqui referidos, fazemos o mesmo percurso da vida de Santo Inácio da auto-suficiência à dependência de Deus.

Neste Ano Inaciano, temos vindo a ser convidados a “ver novas todas em coisas em Cristo”. Com este enquadramento, a Quaresma que agora começa abre-se como uma oportunidade de corrigir a miopia do olhar da fé sobre a realidade. Na imposição das cinzas e nos exercícios quaresmais aqui referidos, fazemos o mesmo percurso da vida de Santo Inácio da auto-suficiência à dependência de Deus, do egocentrismo ao altruísmo, da intolerância que provoca a guerra à mansidão que promove a paz e a comunhão. E, neste percurso de conversão, vamos assimilando a consciência de que o amor é complementaridade, é dar e receber, coloca-nos mais nas obras que nas palavras, como nos recorda ainda Santo Inácio na “Contemplação para Alcançar Amor” com que termina os “Exercícios Espirituais”.

Também a mensagem para a Quaresma deste ano de 2022 do Papa Francisco apela a que a Quaresma nos chama a repor a fé e a esperança a partir do olhar fixo em Jesus Cristo ressuscitado, para dizermos como São Paulo: «Não nos cansemos de fazer o bem; porque, a seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido. Portanto, enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com todos» (Gal 6, 9-10a).» O próprio Deus é o agricultor que generosamente continua a espalhar sementes de bem na humanidade para darem muito fruto. Não nos cansarmos de fazer o bem significa não nos cansarmos de rezar, de extirpar o mal da nossa vida, de pedir perdão no sacramento da Penitência e Reconciliação, de fazer o bem através duma operosa caridade para com o próximo. Assim, a Palavra de Deus «alarga e eleva ainda mais a nossa perspetiva, anunciando-nos que a colheita mais autêntica é a escatológica, a do último dia, do dia sem ocaso», como nos recordam as cinzas deste dia, impostas sobre as nossas cabeças.

Fotografia de  Annika Gordon – Unsplash

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.