O céu descerá, elevando-nos

O céu deixa de ser visto como um outro espaço que fica lá em cima. O céu é a geografia do coração de Deus, onde o cerne do nosso dia a dia está escondido em Cristo.

O céu deixa de ser visto como um outro espaço que fica lá em cima. O céu é a geografia do coração de Deus, onde o cerne do nosso dia a dia está escondido em Cristo.

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No Dia Mundial das Comunicações Sociais, dedico este

texto ao P. José Maria Brito SJ, que imitou o Senhor Jesus,

 olhando e elevando os acontecimentos do mundo com a

frescura do Evangelho.

 

O estranho elevador da salvação

1. Celebramos hoje a grande festa da Ascensão do Senhor aos céus. É esta convicção da nossa fé que nos move a rezar no Credo: “subiu aos céus e está sentado à direita do Pai”. Este estar à direita do Pai tem alguma finalidade? Rezamos no ato penitencial: “Tu que estás à direita do Pai a interceder por nós, Senhor misericórdia”. Portanto, a fé diz-nos que Cristo está à direita do Pai a interceder por nós, a enviar-nos o Espírito Santo que nos recorda a Palavra de Jesus e nos enche, como diz S. Paulo aos Efésios, “de sabedoria e de luz para O reconhecermos com os olhos do coração, compreendendo a esperança a que fomos chamados”.

2.Mas por que razão assumiu Jesus a natureza humana, passando por uma existência dura que terminou na morte e na ressurreição? Não poderia Ele rezar por nós ao Pai sem ter de passar por tantos trabalhos e fadigas? Não era mais simples? Deus não poderia ser menos complicado e limitar-se a suscitar mais um profeta que viesse apenas dizer: Deus está do nosso lado, intercede por nós, e envia-nos o Seu Espírito?

3.Estas questões são muito importantes, mas todas elas supõem uma coisa: o Jesus que desceu à terra subiu, sem qualquer diferença, ao céu e, tendo subido, deixou de estar na terra. Mas será assim? O Jesus que subiu aos céus foi o mesmo que desceu? O Jesus que está à direita do Pai está no “mundo celestial” e deixou o nosso quotidiano?

Subir ao céu como quem levanta a terra

4.O livro dos Atos dos Apóstolos contém uma frase que sempre me intrigou e que lemos hoje na primeira leitura: “Esse Jesus que foi elevado para o Céu, virá do mesmo modo que o vistes ir para o Céu”. Não virá do modo inverso ao que vimos ir (i.e. a descer), como quem subiu ao quinto piso e precisa de descer para voltar do quinto piso para o rés do chão. Ele virá a nós do mesmo modo que o vimos subir, isto é: do meio da experiência humana, do meio do dia a dia o Senhor virá! Jesus tomou parte na nossa viagem humana, daí que a palavra grega ir (poreuomen) signifique viajar, atravessar o caminho. Jesus atravessou os caminhos da nossa humanidade e apresentar-se-á sempre no meio deles, nunca de cima para baixo mas emergindo, de baixo para cima, do meio da existência quotidiana.

Jesus atravessou os caminhos da nossa humanidade e apresentar-se-á sempre no meio deles, nunca de cima para baixo mas emergindo, de baixo para cima, do meio da existência quotidiana.

5.Deste modo, o Céu deixa de ser visto como um outro espaço que fica lá em cima. O céu é a geografia do coração de Deus, onde o cerne do nosso dia a dia está escondido em Cristo. Esse cerne é o mistério que nós somos, e vive à espera de ser revelado na relação com Ele, pela esperança com que enche o nosso coração, voltando-o sempre para fora e para adiante. Na verdade, é sempre mais adiante que Cristo se quer dar a conhecer, fortalecendo a nossa esperança pela vinda de um Reino que nunca acabaremos de definir.

6.Aquele que viajou pelos caminhos da nossa humanidade, leva-a agora dentro de si, no Seu coração. Pelo que, o Senhor que está à direita do Pai não é apenas o que desceu, porque agora carrega em si toda a nossa experiência humana. Ele conhece bem as nossas ansiedades e alegrias, esperanças e desencontros, a nossa experiência não lhe é alheia e a Sua experiência humana pode esclarecer a nossa (Cf. Gaudium et Spes 22).

7.Na sua viagem terrena, através de parábolas, Jesus aproximava os céus da terra mostrando como no grão de mostarda, na vida dos terrenos, no resgatar de uma ovelha ou de uma moedinha, na apanha do peixe ou no ceifar dos campos, há sinais de Deus. Dentro do nosso existir quotidiano, há hiperligações de sentido que nos podem ressituar e animar. Já aí Ele descia o céu à terra elevando os acontecimentos comuns. Ainda hoje, através do dom universal do Espírito Santo, Aquele que carrega os caminhos humanos no coração diz a cada um de nós: Tu és uma parábola de Deus! E é através da tua experiência, lida à luz de consolações e desolações, que te hei de mostrar as sementes do Espírito que estão a despontar na tua vida.

Tu és uma parábola de Deus! E é através da tua experiência, lida à luz de consolações e desolações, que te hei de mostrar as sementes do Espírito que estão a despontar na tua vida.

Aprender a ler o livro da nossa vida

8.A nossa experiência pode ser comparada a um livro, uma página infinita do mundo. Ora, os tempos antigos foram marcados pelo livro das religiões, que formaram os pilares de civilizações milenares. Por sua vez, a modernidade ficou determinada pela descoberta do livro da natureza decifrado pela ciência. Uma descoberta que despoletou inúmeros processos de emancipação civilizacional. Os tempos atuais, marcados pela procura de autenticidade e das raízes da identidade, pode dizer-se que vão colocando na ordem do dia o livro da nossa vida e a busca de um modo mais justo de o ler.

9.O mistério da Ascensão convida-nos a ser atentos e a ler esse livro com profundidade. A não nos submetermos a essa pressa que nos aprisiona a uma generalizada ditatura da superficialidade. O mistério da Ascensão anima-nos a uma resistência íntima face à avidez das respostas rápidas. Porque cada um de nós é parábola de Deus. Há que ler esse livro sem pressa nem pausa, partilhá-lo e acolher o dos outros. É nessa partilha que emerge a convicção de que as nossas histórias não têm de ser becos de solidão, podem ser caminhos de esperança. Vejamos. Um jovem suíço, depois de uma prolongada doença que o fez olhar a sua vida com profundidade, pegou numa bicicleta e encontrou a pequena aldeia de Taizé. Lá construiu, com outros, um pequeno mosteiro que se veio a tornar numa primavera para a Igreja, onde tantos jovens de diferentes igrejas cristãs foram percorrendo um caminho comunitário de reconciliação e confiança. Uma jovem judia de Amsterdão, depois de iniciar um caminho de busca intensa de sentido para a sua existência confusa, afirmou, no meio de um campo de concentração nazi, que a vida é bela, é digna de ser vivida e entregue aos outros como alimento. Roger Schutz e Etty Hillesum, pessoas incompletas e, por isso, cheias de possibilidade! Eis a visão de esperança que o Senhor que subiu aos céus deseja comunicar-nos, desde dentro dos dias.

10. Este caminho implica deixar o que nos impele à pressa e à indiferença, a fim de partirmos em direção a algo novo que nunca acabaremos de definir. Porque Aquele que viajou nos caminhos humanos e os leva no coração, também nos quer viajantes, melhor: peregrinos. Não como seres labirínticos, a andar sempre à volta das nossas emoções, encurvados sobre nós próprios, e acabando por esbarrar contra as pedras da frustração num caminho sem profundidade, sem outros. Não como turistas espirituais, interessados em acumular experiências e gurus, mas acabando por abafar o próprio coração com um orgulho espinhoso, dominado pelas aparências. Nem labirínticos, nem turistas, mas peregrinos(!) – seguidores da transcendência pobre e humilde de Jesus de Nazaré que, por meio dos sinais interiores do Espírito e acompanhados por decisões e confirmações, fazem ressoar no mundo a frase: “Eu estarei para sempre convosco até ao fim dos tempos”.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.