De que tipo de Amor é feita a Igreja?

Qualquer parábola me diz que eu sou tão digna de Amor quanto outra pessoa e é nessa certeza que me tenho tentado reconciliar com a instituição que me falhou quando mais precisava – apesar de ter sido a Fé que me ensinou e permitiu reerguer.

Qualquer parábola me diz que eu sou tão digna de Amor quanto outra pessoa e é nessa certeza que me tenho tentado reconciliar com a instituição que me falhou quando mais precisava – apesar de ter sido a Fé que me ensinou e permitiu reerguer.

Música

A certeza foi musicada, há vários anos, pela Comunidade de Taizé e é hoje cântico recorrente em celebrações, noites de oração ou somente naqueles momentos em que precisamos de ter algo que trautear para nos lembrar das certezas que sempre tivemos.

Ponto prévio: cresci numa casa profundamente católica. A minha mãe foi catequista durante cerca de 50 anos, eu e as minhas irmãs fizemos toda a caminhada na Fé, desde o batismo ao Crisma, para além de uma vivência muito grande do Corpo Nacional de Escutas – onde, aliás, a segunda geração da família continua o percurso.

Andei na Catequese, no Grupo de Jovens, fiz parte do Coro Infantil, depois do Coro Juvenil e depois do Coro adulto que animava as celebrações da eucaristia numa paróquia que me viu crescer, me ajudou no caminho, se tornou casa. Fui escuteira durante muitos anos, pertenci à direção da associação juvenil ligada à paróquia. Organizei (e participei em) Festivais da Canção e de Teatro Cristãos, colaborei em meios de comunicação ligados à paróquia, à vigararia ou ao Patriarcado, fui chamada várias vezes para colocar ao serviço da Igreja os meus dons. Animei retiros espirituais – fiz outros tantos – fui a pé a Fátima e fui animadora de grupos de jovens.

Mudei de cidade, mas encontrei uma paróquia onde me integrei e voltei a assumir responsabilidades: servi enquanto leitora, fiz parte do Conselho Pastoral e da equipa que garantia o boletim de informação paroquial.

Sou Católica desde que me conheço e sempre preguei o Amor que me ensinaram – em casa e nos lugares por onde tive a sorte de passar – sem entender por que havia tantas pessoas a duvidar de que a Igreja era lugar desse Amor que eu sempre encontrara e que vivia diariamente. Até ao dia em que me separei.

Casei-me na igreja matriz dessa nova casa e lá batizei a minha filha, que iniciou agora a sua própria caminhada, na Catequese e no Corpo Nacional de Escutas. Sou Católica desde que me conheço e sempre preguei o Amor que me ensinaram – em casa e nos lugares por onde tive a sorte de passar – sem entender por que havia tantas pessoas a duvidar de que a Igreja era lugar desse Amor que eu sempre encontrara e que vivia diariamente.

Até ao dia em que me separei.

Foram muitos meses (a conta pode fazer-se em anos) de reflexão, de angústias, de acompanhamento espiritual até à decisão que, sabia, não era aquela que pensara um dia ser solução. “Amar é um exercício de vontade”, já escrevi aqui. Mas a Verdade que Jesus nos ensina obriga-nos a pôr muitas coisas em causa. Até aquelas que julgámos para sempre. E para respeitar a pessoa que sou e a pessoa com quem me casara, não podia fazer da vida uma mentira. Da minha, da dele, da da nossa filha.

Quando me separei, e ao contrário do que esperara (e do que precisava!), não pude voltar da mesma forma à casa que sempre me acolhera e de que tanto precisava. Os sacerdotes evitavam falar-me – salvo raras e importantíssimas exceções –, os antigos colegas de coro, de ministério do leitor, os vizinhos de banco nas eucaristias semanais preferiam ignorar a minha presença…os olhares mudaram, as bocas silenciaram, a distância fez-se sentir como uma espécie de rochedo que foi crescendo para me tapar uma porta que, de repente, me queriam dizer que já não podia passar.

O lugar que sempre fora de conforto, de crescimento, de porto seguro, tornara-se, de repente, um lugar onde sentia que não me queriam mais. Eu deixara de ser digna do Amor que cantamos tantas vezes. Deixara?

É que ao longo do caminho – precisamente porque tive o privilégio de privar e aprender com pessoas muito incríveis – sempre aprendera que Deus não nos retira o privilégio do Seu amor. Como um pai não deixa de amar os seus filhos quando eles fazem coisas de que os pais não gostam, Deus não podia ter deixado de me achar digna do Seu Amor. Apesar de eu não o sentir nas tantas pessoas que comigo se cruzavam.

O lugar que sempre fora de conforto, de crescimento, de porto seguro, tornara-se, de repente, um lugar onde sentia que não me queriam mais. Eu deixara de ser digna do Amor que cantamos tantas vezes. Deixara?

A mágoa poderá até nem ter passado totalmente – mas cá estamos, a trabalhar o Perdão todos os dias – mas houve algo que já não me habita: a dúvida. Deus é Amor, sempre, e eu tenho a certeza disso mesmo que a Igreja, às vezes, teime em querer mostrar-me o contrário. Porque, entre outras coisas, percebi que ela só teima porque é feita de Homens. E, na sua humanidade, não consegue muitas vezes resistir aos ímpetos da sua condição: o julgamento, a sobranceria da alegada superioridade moral, o castigo. Algo que não faz parte do léxico divino, muito menos da mensagem cristã que nos devia guiar.

“Quem nunca pecou que atire a primeira pedra”, bradou Jesus naquela parábola que todos gostamos de citar – mesmo quando temos os bolsos cheiinhos delas para atirar. Podia também recordar a parábola do Bom Pastor ou a do Filho Pródigo. Qualquer uma delas me diz que eu sou tão digna de Amor quanto outra pessoa qualquer e é nessa certeza que me tenho tentado reconciliar com uma instituição que me falhou quando eu mais precisava – apesar de ter sido a Fé que me ensinou e me permitiu reerguer-me.

Felizes os puros de coração

Esta reflexão tornou-se mais constante nos últimos meses, ao assistir ao desmoronar do frágil castelo de cartas que, ao longo de décadas, foi construído em redor da questão dos abusos dentro da Igreja Católica. A tragédia que terá destruído a vida de centenas de pessoas, em Portugal, tem sido encarada por demasiados membros da Igreja – altas esferas também – com a mesma sobranceria com a qual me olharam depois de saberem do meu divórcio. A tentativa de conter os danos com a criação de comissões dentro da própria Igreja ou com a transferência de padres entre paróquias como se, por milagre, isso restaurasse o passado; a manutenção da ideia de que os sacerdotes são divinos, de que não padecem dos mesmos problemas que os restantes mortais; a perigosa tendência para assumir que a Igreja poderia estar acima da Lei porque tomara “as suas próprias medidas” não revelam que a organização é má ou criminosa – ainda que membros da sua congregação o passam ser. Mas revelam, gritam, que a Igreja é humana.

A tragédia que terá destruído a vida de centenas de pessoas, em Portugal, tem sido encarada por demasiados membros da Igreja – altas esferas também – com a mesma sobranceria com a qual me olharam depois de saberem do meu divórcio.

Deus enviou à sua Terra Jesus Cristo para que a sua divindade se revestisse de Humanidade. O Filho de Deus é manietado e morto por aqueles que lhe não quiseram reconhecer a origem divina, que se assustaram com a sua admissão da própria simplicidade – foi assim que se fez grande.

Jesus Cristo, Deus feito Homem, aparece-nos para ensinar a humildade, o serviço, a entrega desinteressada, o Amor incondicional. É Ele quem nos ensina a dar a outra face, é Ele quem aprende com as crianças a importância da inocência e da ingenuidade, é Ele quem nos mostra que a Verdade (Quid est Veritas?, pergunta Pilatos) deve ser sempre procurada e revelada, sejam quais forem as consequências a que leva – no Seu caso, foi a morte.

E nós, Igreja, na nossa Humanidade, teimamos em não entender nada daquilo que nos foi mostrado há mais de dois mil anos pelo Deus feito Homem a quem rezamos todos os dias. Conseguíssemos nós centrarmo-nos mais nas Suas palavras – “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei” – e talvez pudéssemos estar a reconstruir sobre os terríveis erros do passado; talvez pudéssemos estar a ser sinal de Amor em tempos de turbulência; talvez pudéssemos, enquanto Igreja, ser aquilo que nos foi pedido: anunciadores de uma Boa Nova que é revestida de Verdade, de Amor e de Fé.

Assim, na nossa Humanidade, estamos apenas a ser uma Igreja agarrada a uma ideia de Amor inexistente – e que Jesus não ensinou: a de que há pessoas, há vidas mais dignas que outras. E de que nem todas são merecedoras do Amor de Deus.

E não pode haver algo mais falso do que isso. Porque Deus é Amor e a morte do Seu Filho não foi só para salvação de alguns.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.