Não guardo muitas memórias dos anos em que estudei nos Salesianos em Lisboa. Era adolescente, é certo, o que torna enviesada a perspetiva desse tempo. A negatividade, o fechamento e as crises são próprias daquela idade. Porém, um olhar sobre o passado permite ver alguma coisa.
Estávamos na segunda metade da década de 80. O novo e grande ginásio era o maior chamariz do colégio. Os professores eram carismáticos, o pátio era a perder de vista e tudo era ’em grande’; mas o ensino, diria hoje, chegava-me desarticulado e massificado. Tinha colegas de muitos lugares e quando nos reencontramos contam-se histórias deste e daquele professor. Mas ficaram poucas amizades, pouca ‘cultura comum’, pouca relação com o colégio. A pastoral era de massas: o “bom dia” e as grandes festas era “tudo ao molho”, confissões em série durante uma aula subitamente interrompida, um ou outro salesiano mais primário ou estranho. No final do 7.° ano larguei as “aulas de catequese”, dadas por uma professora sentada à secretária em cima de um estrado, e deixei de viver a Fé. Seguiram-se vários anos longe de Jesus. Desprevenido, apanhei uma forte adolescentite, com os seus sintomas próprios: autossuficiência, atrevidismo, disparatismo, etc.
Não quero ser nem parecer ingrato. É justo reconhecer que houve um ou outro professor que me marcou muito positivamente, um ou outro padre com quem tive boas conversas; que ali aprendi vários desportos (incluindo baseball); que foi nesses anos que a matemática e a história emergiram como matérias preferidas. E muito mais certamente, onde a memória já não chega.
Entretanto, passado este tempo todo, tenho sabido, por várias fontes, que a pastoral melhorou bastante, que há mais “cultura” de colégio e que o ensino se tornou muito mais consistente e organizado: tem atualmente um moodle super completo, ambicionado por outros colégios. Há tempos, muitos de nós beneficiámos das salas que o colégio disponibilizava gratuitamente para festas de anos, e ainda beneficio, com os meus filhos, dos campos desportivos que deixa abertos aos fins de semana para quem quiser lá ir jogar, livremente.
No meio destas luzes e sombras, houve alguém que me ficou para sempre: D. Bosco! Calhou-me em sorte fazer o papel de D. Bosco numa peça de teatro no colégio, que depois foi apresentada noutros lugares. Ao tempo, li aqueles pequenos livrinhos sobre a sua vida. Alguns episódios, os seus sonhos, a sua pessoa, parece que ficaram cá dentro.
João Bosco
Rapaz pobre, nascido em 1815, consegue a muito custo estudar e tornar-se padre. Logo nos primeiros anos de vida sacerdotal percebe que a sua missão seriam os jovens, sobretudo operários, da zona de Turim. Começou por criar um lugar (hoje diríamos uma espécie de ATL ou centro juvenil, mas seria mais que isso), depois criou outro e outro. Aprendeu teatro e artes circenses para conseguir cativar alguns. Apostava muito no desporto e nos trabalhos manuais. Adaptava-se. Hoje diríamos que promovia uma educação integral. Dizia que a educação é coisa ‘do coração, da razão e da religião’.
Várias vezes se endividou para abrir mais um daqueles ‘centros juvenis’, mais uma igreja, mais uma escola. Trabalhava muito, arriscava, atirava-se para a frente, dormia pouco. Há tempos, fiz, com a minha mulher, um curso de introdução ao eneagrama. No final do curso, uma das muitas conclusões foi que faltam na Igreja perfis de líderes eficazes (número 3 do eneagrama). Certamente D. Bosco foi um líder eficaz. Mas não foi só isso.
Moçambique
A vida entretanto avançava. Depois da passagem pelos Salesianos, fui para o liceu no Secundário e depois para o Técnico. Os últimos dois verões do curso foram passados em Moçambique, para onde regressei quando o terminei. Fruto de alguns encontros e coincidências, acabei por ficar a dar aulas de química e de português durante um ano inteiro numa escola salesiana: a Escola de Artes e Ofícios da Moamba, a 80 km de Maputo. Ali descobri outros Salesianos. Eram de várias origens: dois argentinos, um venezuelano, dois timorenses, um espanhol, dois moçambicanos, dois portugueses. Uma comunidade grande, com muito trabalho, na escola, no internato e na imensa área geográfica pela qual era pastoralmente responsável. Diziam algumas piadas ligeiras sobre os seus confrades em países europeus: “Mas não podemos criticar muito porque eles é que mandam o dinheiro para nós podermos trabalhar aqui!”, confidenciou-me um dia um velho salesiano espanhol. E tanto que ali trabalham: criam escolas, dinamizam múltiplos centros profissionais, tomam conta de paróquias e comunidades. O ‘exótico’ africano é só o pano de fundo para uma maravilha de audácia missionária eficaz, que pude testemunhar de perto. Aquela superabundância de vida mudou-me! Os lapsos sentidos quando era adolescente foram ali largamente superados.
Oxalá as atuais guerrilhas que temos assistido naquele país não venham estragar essa grande e bela obra feita. Em Lisboa dava-me conta disso, mas na Moamba percebi melhor: nas escolas salesianas não haviam bancos nos recreios: os jovens querem-se é em movimento! Como D. Bosco queria.
Sonhos
D. Bosco teve vários sonhos marcantes, que estão hoje bem documentados *.
O “Sonho dos 9 anos” terá sido fundante. Ele próprio o descreve: “Estava num pátio bastante espaçoso, onde se encontrava uma multidão de rapazes que se divertia. Alguns riam, outros jogavam, outros blasfemavam. Ao ouvir aquelas blasfémias, lancei-me imediatamente no meio deles dando murros e dizendo palavras para os fazer calar. Naquele momento apareceu um homem venerando, em idade viril, nobremente vestido. Um manto branco cobria-o por completo; mas a sua face era tão luminosa, que eu não conseguia fixá-lo com os olhos. Chamou-me pelo nome e mandou-me pôr-me à frente daqueles rapazes acrescentando estas palavras: “Não com pancadas, mas com a mansidão e com a caridade é que deverás conquistar estes teus amigos”. Naquele momento vi a seu lado uma senhora de majestoso aspeto, vestindo um manto todo resplandecente, como se cada ponto seu fosse uma estrela fulgidíssima. Vendo-me cada vez mais confuso, fez-me sinal para me aproximar dela e, tomando-me com bondade pela mão, disse-me: “olha”. Olhando dei-me conta que os rapazes tinham fugido todos e, em vez deles, vi uma multidão de cabritos, cães, gatos, ursos e vários outros animais. “Eis o teu campo, eis onde deves trabalhar. Torna-te humilde, forte e robusto; e aquilo que neste momento vês suceder com estes animais, deverás fazê-lo com os meus filhos”. Voltei então o olhar e, em vez de animais ferozes, apareceram outros tantos mansos cordeiros que, todos a saltitar, corriam ao redor e faziam festa àquele homem e àquela senhora”.
Este sonho foi semente de uma autêntica revolução educativa. Num tempo em que a educação era militarizada desde tenra idade e dada basicamente ‘à pancada’, D. Bosco virá dizer: “Que os jovens não só sejam amados, mas que se sintam verdadeiramente amados”. A amabilidade (amorelleza) é um traço forte da pedagogia salesiana. Afetos adaptados e ordenados, bem entendido, mas afetos reais, humanos, não só espirituais! “Apanham-se mais moscas com mel do que com vinagre” é a expressão lapidar de S. Francisco de Sales, o bispo que inaugurou um novo tipo de espiritualidade em que entram explicitamente o coração e os afetos humanos. Dele derivam a espiritualidade e a própria palavra: SALESianos.
O chamado ‘Sistema Preventivo’ de D. Bosco para a educação dos jovens é fácil de perceber: “mais vale prevenir na educação da juventude do que depois ter de os ir visitar à prisão!” Não custa muito ser amável, mas são grandes os custos da falta de amabilidade, da falta de afetos (adequados e moderados), sobretudo na educação juvenil. Uma das péssimas consequências dos horríveis abusos sexuais recentemente revelados é que pervertem qualquer saudável amabilidade educativa. Com receio de tudo, passamos a desconfiar de todos. Não sei o que daqui pode advir. Com frieza e distância talvez se eduquem ótimos ‘robots’ estóicos e de alta qualidade técnica, aptos para o mundo futuro da tecnologia e da IA…
Outro seu sonho importante foi o das “Duas Colunas”: uma barca grande, com o Papa à proa, passava entre duas colunas, uma encimada por uma hóstia grande, e outra por uma imagem da Mãe de Deus. Maria foi sempre muito presente na sua vida, apelidando-a de Virgem Auxiliadora, ao ponto de no final da vida confidenciar: “foi ela que tudo fez”. No emaranhado confuso e pietista do século XIX, este sonho põe em evidência as colunas vitais do quotidiano da Igreja: a Eucaristia e Maria.
D. Bosco tornou-se importante para vários Papas, que o apadrinharam e procuraram. Precisaram dele, do seu (raro) perfil de líder, simultaneamente amável e eficaz. São João Paulo II deu-lhe o cognome de “pai e mestre dos jovens”.
Coração
D. Bosco era profundo devoto do Coração de Jesus: a bela devoção eucarística e afetiva que o Papa Francisco veio relançar na sua mais recente encíclica. Devoção que foi o melhor remédio contra os desumanos rigores jansenistas do tempo romântico. E hoje talvez seja o contrapeso necessário para um racionalismo religioso exagerado. D. Bosco disse certa vez: “no Sagrado Coração adquirimos o verdadeiro calor, o amor de Deus, para nós e para os outros”. Tal devoção explicitava-se na sua insistência na confissão frequente e na participação quotidiana na missa, colunas que sustentam o seu ‘Sistema Preventivo’. Quase no final da sua vida – em 1888 – o Papa Leão XIII pediu-lhe para levar adiante a construção da Basílica do ‘Sacro Cuore’, em Roma. A obra encontrava-se embargada em atavismos vários e precisava de uma liderança eficaz. Foi então retomada e concluída em poucos anos, graças à tenacidade e sacrifícios de D. Bosco.
O fundador do movimento de Igreja em que participo aproveita vários traços da espiritualidade salesiana, sobretudo uma forte e cálida devoção mariana e uma grande amabilidade no trato. Sem medo dos afetos (ordenados) e vendo nos outros sempre mais um caminho do que um obstáculo para o Outro, Deus.
Ao final, é justo agradecer a grande marca que os Salesianos me deixaram, sobretudo na pessoa de D. Bosco. Estas linhas querem ser um pequeno tributo a esse grande educador, neste seu dia e neste mês em que o Papa nos pediu especialmente para rezarmos pelo direito à educação **.

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Sobre os sonhos de D. Bosco:
https://www.salesianos.pt/em-foco/sonhos-de-sao-joao-bosco-licoes-projecoes-e-profecias/
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Intenção do Papa para janeiro 2025:
https://thepopevideo.org/janeiro-pelo-direito-a-educacao/?lang=pt-br
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.