Coração de Jesus, coração da fé

Para que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus viva e faça viver, para que tenha vitalidade e seja fecundo, precisa de dizer adeus ao que nela deixou de ser expressão vital e caminho de fé neste nosso tempo.

Para que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus viva e faça viver, para que tenha vitalidade e seja fecundo, precisa de dizer adeus ao que nela deixou de ser expressão vital e caminho de fé neste nosso tempo.

«Do amor não sabemos falar. Os amores tornaram-se cada vez mais fungíveis e frágeis. Secaram-nos os olhos. Mas a vida é boa e sem porquê, como o é a rosa de Silesius. Mestre Eckhart dizia antes dele: “por mais dura que seja a vida, quer-se todavia viver (…) Mas porque vives tu? Para viver, dizes tu, e porém não sabes porque vives. Tão desejável é a vida em si mesma que a desejamos por si mesma”. Ora a rosa é o nome da vida. Floresce porque floresce. Enxugue a fonte do Amor as lágrimas dos nossos olhos a nós que tão mal amamos. Se Ele prometeu renovar todas as coisas, não renovará a nossa secura de afectos, o nosso luto, a perda da regra de ouro que a Vida nos deixou como mandamento novo?» (José Augusto Morão, Quem vigia o vento não semeia).

As palavras de J. A. Morão evocam a fonte do Amor, do qual parece que deixámos de saber falar bem, mesmo que a boca e metade das canções que ouvimos estejam saturadas dessa palavra. Tantos e tão intensos parecem ser os nossos amores e tão fracos resultam ser os laços que nos unem, tão efémera se revela a felicidade que nos deixam. Até os olhos, que são o espelho da alma, perdem a virtude das lágrimas, deixando de conhecer o que é a consolação e a compaixão. Mas a vida continua misteriosamente sem porquê, como a rosa que floresce só porque sim. Como um milagre, floresce porque floresce. Habita-nos intimamente o desejo de viver. E as águas que saciam esse tão íntimo desejo só da fonte do Amor podem brotar. Nós sabemos que é assim, ainda que lhe resistamos. Serão essas águas a renovar “a nossa secura de afectos”, “o nosso luto”, “a perda da regra de ouro” que nos pede que comecemos por fazer aos outros o que queremos que os outros façam a nós. Há um Amor-fonte que “enxuga as lágrimas nos nossos olhos, a nós que tão mal amamos”. Essa fonte pode ser dita no símbolo de um coração ferido, o coração de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus encarnado. Também a sede mais elementar e mais profunda do nosso ser pode ser dita no símbolo do coração de carne, o coração do ser humano que não bate saudável se não se comover por se reconhecer amado e que deseja poder amar com todas as suas forças.

Tantos e tão intensos parecem ser os nossos amores e tão fracos resultam ser os laços que nos unem, tão efémera se revela a felicidade que nos deixam.

Para ser actual, a devoção precisa de dizer adeus a si mesma

A devoção e o culto ao Sagrado Coração de Jesus nasceram num contexto cultural, político e eclesial com traços muitos particulares. Ao longo de mais de um século tiveram a capacidade de ser interface de encontro entre a fé cristã e o mundo secular. Ora, quando já não existe aquele mundo que fez nascer esta espiritualidade específica, como resposta concreta de fé às perplexidades, aos desafios e às novas linhas de força desse mesmo mundo, e tendo o nosso tempo, hoje, traços também muito próprios, poderá a devoção ao Coração de Jesus ser ainda contemporânea? Estará ainda à altura de comover o afecto e de determinar a liberdade de sujeitos crentes do século XXI? Será capaz de mover a mente para uma mais alta, mais larga e mais profunda inteligência da fé? Saberá implicar a vida, no seu todo, num estilo de vida configurado pelo Evangelho de Jesus? Poderá modelar outras práticas eclesiais? A minha convicção é a de que esta devoção continua a ter um lugar particularmente propício, quer para desenhar um espaço contemporâneo para uma fé sensível e sensata, quer para recentrar a Igreja e a sua missão de evangelização no coração da fé. Como sublinha o teólogo Marcello Neri (Gesù, affetti e corporeità di Dio. Il Cuore della fede), esta devoção não terá necessariamente de ser admirada e praticada por todos os cristãos, mas cada cristão poderá reconhecê-la e apreciá-la como forma adequada da piedade cristã. Nem toda a vida de fé terá necessariamente de se plasmar pela referência ao Coração de Jesus, mas toda a fé se determina fazendo referência ao sentido último que se exprime neste símbolo.

A minha convicção é a de que esta devoção continua a ter um lugar particularmente propício, quer para desenhar um espaço contemporâneo para uma fé sensível e sensata, quer para recentrar a Igreja e a sua missão de evangelização no coração da fé.

A devoção ao Coração de Jesus precisará de ter liberdade e coragem para dizer adeus a traços de si mesma. Muitas imagens, palavras, práticas deixaram de evocar, de significar, de realizar a fé no tempo que é o nosso. Há imagens, a maioria delas sulpicianas, sentimentais e kitch, que deixaram de ser capazes de tocar a sensibilidade e de mover o afecto, que não seja de modo exterior e superficial. Muitos contemporâneos têm outra sensibilidade e outros gostos estéticos. Por isso, indiferentes, lhes passam ao largo, se não acontecer que as ridicularizam e rejeitam. Há palavras difíceis, que deixaram de falar por si, obscurecendo ou retirando inteligibilidade, em vez de iluminar a inteligência da fé. Penso, por exemplo, em “oblação”, “sacrifício”, “expiação”, “reparação”. Bem ou mal, a língua que falamos deixou de lhes atribui sentido. Há práticas que não são capazes de tocar o afecto e de comprometer a vida, tal como hoje é sentida, vivida e expressa. Serão práticas de tempos e de espaços religiosos e de piedade, separados dos tempos e dos espaços humanos quotidianos de hoje, sem relação vital com estes. Para que a devoção ao Sagrado Coração de Jesus viva e faça viver, para que tenha vitalidade e seja fecundo, precisa de dizer adeus ao que nela deixou de ser expressão vital e caminho de fé neste nosso tempo. Este exercício de adeus será fundamental para que o próprio símbolo não se torne estático e estéril. Não lhe bastará, por isso, repetir-se a si mesmo, mas precisará de se expor a novas leituras, de se reler em novos contextos, de estabelecer novas relações. Este dizer adeus será exercício de fidelidade criativa, necessário para que a devoção e o culto não fiquem confinados no museu das relíquias de um passado religioso ido, que já dizem muito pouco aos homens e mulheres de hoje. Por este caminho de desprendimento, poderá mais facilmente redescobrir os tesouros que guarda em si e que ainda não foram suficientemente expostos. Creio mesmo que esses serão alguns dos tesouros que a fé cristã mais precisa de re-descobrir e de re-dizer e dos quais retirar consequências coerentes para as práticas comunitárias e para a vida individual dos crentes, num momento em que a Igreja é convocada a viver corajosamente em saída, a eleger as periferias existenciais e geográficas como os lugares que mais lhe convêm, a anunciar a alegria do Evangelho do amor misericordioso de Deus pelo testemunho que toca e atrai.

Este dizer adeus será exercício de fidelidade criativa, necessário para que a devoção e o culto não fiquem confinados no museu das relíquias de um passado religioso ido, que já dizem muito pouco aos homens e mulheres de hoje. Por este caminho de desprendimento, poderá mais facilmente redescobrir os tesouros que guarda em si e que ainda não foram suficientemente expostos.

Coração de carne. Deus diz-se, dando-se no corpo de Jesus

A história de vida de Jesus de Nazaré, que acontece entre o seu nascer e o seu morrer, é o lugar incontornável e inultrapassável para Deus dizer quem é. Não haverá outro lugar, espiritualmente mais íntimo ou intelectualmente mais alto, onde conhecer a manifestação da verdade de Deus e reconhecer a realização da sua justiça que não seja a contingência existencial da vida corpórea e afectiva de Jesus de Nazaré. Esta sua história de vida – o seu corpo – não é um lugar meramente instrumental para que Deus revele a verdade sobre si mesmo, que, uma vez conhecida, tornaria dispensável o lugar e a forma pela qual se faz conhecer. A verdade que Deus é – “Deus é amor” – diz-se na vida de Jesus de Nazaré, uma vida vivida e oferecida num corpo sensível. O caminho para conhecer Deus é, por isso, Jesus de Nazaré, que não é uma ideia, um ideal, uma regra, mas uma pessoa, a Pessoa do Filho de Deus encarnado, sendo que uma pessoa só se conhece pelo encontro com outra pessoa. Como bem recordou o Papa Bento XVI, logo na abertura da sua enciclica Deus caritas est, é o encontro com esta pessoa que determina a fé, não o conhecimento de uma ideia muito elevada, a adesão a um grande ideal ou a um rigoroso compromisso ético. A verdade de Deus dá-se a conhecer na história de uma vida e só através desta história de vida, a de Jesus de Nazaré, poderá ser reconhecida.

Esta sua história de vida – o seu corpo – não é um lugar meramente instrumental para que Deus revele a verdade sobre si mesmo, que, uma vez conhecida, tornaria dispensável o lugar e a forma pela qual se faz conhecer. A verdade que Deus é – “Deus é amor” – diz-se na vida de Jesus de Nazaré, uma vida vivida e oferecida num corpo sensível.

Deus é amor (1Jo 4,8) e o amor que Deus é diz-se no dar-se de Jesus de Nazaré, expondo-se ao reconhecimento dos discípulos, de modo que o podemos ouvir, ver, tocar (1Jo 1,1), e não simplesmente aprender ou cumprir. Ora, tão pouco é ideia, conceito, abstração, sentimento o amor que Deus também. É amor-que-ama, realizado livremente, sem porquês e sem condições, no corpo-de-carne de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus feito homem. É assim que gera um espaço de contacto sensível, a possibilidade de apreço afectivo, de discernimento crítico, de acolhimento e de correspondência livres.

O Sagrado Coração de Jesus não é o coração do Filho eterno. É, sim, o coração do Filho eterno encarnado em Jesus de Nazaré. Importa sublinhar que não é de todo a mesma coisa. Quem nos salva não é o Filho de Deus, mas o Filho de Deus encarnado. O amor de Deus não é um amor-ideia-perfeita, muito alta ou muito interior, de certa forma estranha às nossas experiências de amor, de tão perfeita e elevada que seria. É na vida corpórea e sensível de Jesus de Nazaré – no seu coração de homem – que reconhecemos o amor eterno. Apontando para o Coração de Jesus como símbolo da sua singularidade e para o cunho afectivo da relação que estabelece com quem o reconhece, esta devoção tem a virtude de indicar e de pôr em contacto com o conjunto da vida sensível e sensata do Filho eterno entre nós, para aí reconhecer e acolher a revelação do amor de Deus. Por ser con-tacto, não são apenas as palavras e o seu conteúdo a dizerem o amor que Deus é – não deixa de ser curioso e sintomático que, na pregação, o texto evangélico sugira, habitualmente, a quem o comenta “duas ou três ideias”, e raramente, “dois ou três toques” ou “dois ou três sabores”. Também o timbre da voz de Jesus ou, simplesmente, o seu silêncio, dizem o amor que Deus é. A oração de Jesus diz algo do amor que Deus é, como o dizem o facto de Jesus aceitar o convite de pecadores para ir a suas casas e comer com eles. Não o diz apenas a sua vida pública, mas também a sua infância e a sua vida oculta. Dizem-no as parábolas, como o dizem os gestos, os grandes e os pequenos: oferecer a vida à morte, como escrever no chão. Não revela menos o amor que Deus é tocar leprosos e deixar-se aproximar, tocar, beijar por uma mulher de má vida do que dizer a outra “vai e não voltes a pecar”.

Dizem-no as parábolas, como o dizem os gestos, os grandes e os pequenos: oferecer a vida à morte, como escrever no chão. Não revela menos o amor que Deus é tocar leprosos e deixar-se aproximar, tocar, beijar por uma mulher de má vida do que dizer a outra “vai e não voltes a pecar”.

O Coração de Jesus expõe um amor “de carne”, não uma doutrina intemporal sobre o amor, implicando a inteligência sensível da fé, o reconhecimento afectivo do coração, que tem sempre as suas razões vitais, aquelas que verdadeiramente põe em contacto com o sentido das coisas e a sabedoria da vida. Se reclama a compreensão, não reclamará menos o conjunto dos nossos sentidos, tacto incluído, e o discernimento dos afectos. O Coração de Jesus dando corpo sensível ao amor – gestos, voz, toques, silêncios, palavras, parábolas, encontros, refeições… – não pode não reclamar o conjunto dos nossos sentidos e do nosso afecto, porque se dá a ver, a escutar, a tocar, a apreciar. É assim que a verdade se dá a conhecer.

O Coração de Jesus dando corpo sensível ao amor – gestos, voz, toques, silêncios, palavras, parábolas, encontros, refeições… – não pode não reclamar o conjunto dos nossos sentidos e do nosso afecto, porque se dá a ver, a escutar, a tocar, a apreciar. É assim que a verdade se dá a conhecer.

A ser assim, um dos maiores desafios pastorais passará pelo caminho de ir do coração manso e humilde ao Jesus todo. Estará, em concreto, na arte da iniciação aos mistérios da vida de Jesus de Nazaré, pelo conhecimento da Sagrada Escritura e, de modo especial, dos Evangelhos. Seria pouco ensinar doutrina ou levar a cumprir regras. Importa iniciar e cultivar a contemplação do Jesus evangélico, para ir alcançando o conhecimento íntimo do seu coração, de tal maneira que deixe de ser personagem vaga ou do passado, ideia teológica ou ideal de comportamento. Se o Senhor não existe sem Igreja que o reconhece, o celebra e o testemunha, importa que a Igreja não esconda o seu Senhor, numa abstração intelectual, num arrepio sentimental ou numa imposição moral, mas que aponte ele, para Jesus de Nazaré dos Evangelhos.

Importa iniciar e cultivar a contemplação do Jesus evangélico, para ir alcançando o conhecimento íntimo do seu coração, de tal maneira que deixe de ser personagem vaga ou do passado, ideia teológica ou ideal de comportamento. Se o Senhor não existe sem Igreja que o reconhece, o celebra e o testemunha, importa que a Igreja não esconda o seu Senhor, numa abstração intelectual, num arrepio sentimental ou numa imposição moral, mas que aponte ele, para Jesus de Nazaré dos Evangelhos.

Outro desafio igualmente necessário e, mesmo, urgente, que decorre do dizer-se de Deus no dar-se efectivo e afectivo de Jesus, diz respeito à dimensão corpórea e afectiva da celebração litúrgica da fé. O registo explicativo, doutrinal e didático, destinado essencialmente à compreensão intelectual, e aquele moral, destinado ao cumprimento, continuam a determinar a prática litúrgica. Como os frutos parecem ser escassos, é contrabalançado por um registo emotivo e sentimental, de efeitos especiais, destinado a capturar a atenção pessoal mais imediata a superficial. Relançar uma prática litúrgica comunitária, inteligente, sensível, tão criativa quanto sóbria, que envolva e implique o todo do ser humano, na sua identidade corpórea e afectiva – não apenas a inteligência que compreende, a emoção imediata que se arrepia ou a vontade que adere –, com o conjunto dos seus sentidos – a vista e o ouvido, mas também o tacto e o gosto –, apresenta-se como grande necessidade pastoral. O registo individualista, passivo e de participação externa, de cumprir uma obrigação, que requisita sobretudo o saber intelectual, que orienta moralmente ou, simplesmente, que excita a sensibilidade mais superficial, revela o seu cansaço e gera frustração. A recuperação de modelos anteriores celebrativos pré-vaticano II, também não realizam de todo os passos que importa dar. Favorecer passos e passagens que iniciem existencialmente e de modo gradual ao mistério de Cristo, parece ser o caminho que precisamos de percorrer. Iniciar é o grande verbo que importa reaprender a conjugar liturgicamente.

Favorecer passos e passagens que iniciem existencialmente e de modo gradual ao mistério de Cristo, parece ser o caminho que precisamos de percorrer. Iniciar é o grande verbo que importa reaprender a conjugar liturgicamente.

O coração fala ao coração. A verdade do amor expõe-se ao reconhecimento afectivo e à adesão livre

Cord ad cor loquitur (O coração fala ao coração) foi o lema do Cardeal Newman. O Coração misericordioso de Jesus fala aos desejos e às formas de reconhecimento afectivo do coração de homens e de mulheres reais, com a sua própria história biográfica de desejos e de feridas, de encontros e desencontros, de reconhecimento e desilusões.

O Coração misericordioso de Jesus fala aos desejos e às formas de reconhecimento afectivo do coração de homens e de mulheres reais, com a sua própria história biográfica de desejos e de feridas, de encontros e desencontros, de reconhecimento e desilusões.

Sabemos como o símbolo do coração não é sem ambiguidades. A história do Ocidente tanto o tem identificado como lugar de máxima fiabilidade e de transparência do humano, como lugar instável e indigno de confiança, em relação a um saber verdadeiro e universal, supostamente só alcançável pela razão clara e distinta. Ainda assim, o coração continua a evocar o envolvimento da totalidade do sujeito humano e da sua experiência de vida, envolvendo-o no desejo, na busca e no reconhecimento de algo definitivo, com paixão e ousadia, ainda que tal desejo e busca impliquem feridas e custo. Paralelamente, este desejo e movimento do coração para o definitivo assume a força de uma relação livre. O desejo do coração busca, não apenas a satisfação imediata de necessidades, mas a correspondência livre de um outro coração que gere um laço de afecto que permaneça.

Ainda assim, o coração continua a evocar o envolvimento da totalidade do sujeito humano e da sua experiência de vida, envolvendo-o no desejo, na busca e no reconhecimento de algo definitivo, com paixão e ousadia, ainda que tal desejo e busca impliquem feridas e custo.

Contemplar o Coração de Jesus é reconhecer como Deus, conhecendo esta disposição do coração humano, escolhe entregar-se na forma do amor, para ser reconhecido pelo saber afectivo e sensato do coração – o coração sabe sentindo; sentindo, sabe. Deus vai ao encontro do desejo de definitivo que habita o coração humano e expõe-se ao reconhecimento da liberdade humana. O amor não poderá impor-se pela força à liberdade de um outro, contornando os seus desejos mais íntimos de vida, nem suscitar a sua adesão, contornando a liberdade por uma qualquer forma de sedução. O amor expõe-se ao reconhecimento afectivo e à correspondência livre de um outro. Essa é a sua força, essa é a sua fragilidade, força e fragilidade que se também se tornam constitutivas do testemunho cristão.

Contemplar o Coração de Jesus é reconhecer como Deus, conhecendo esta disposição do coração humano, escolhe entregar-se na forma do amor, para ser reconhecido pelo saber afectivo e sensato do coração – o coração sabe sentindo; sentindo, sabe.

Se repararmos no riquíssimo relato de Lucas 24, sobre o percurso de reconhecimento do Ressuscitado por parte de dois discípulos a caminho de Emaús, colhemos a força do saber do coração, concretamente na sua relação com o conhecimento reflexo associado à vista. Se o saber do coração é conduzido ao conhecimento reflexo do acontecimento de Jesus, o relato evangélico faz-nos saber que o afecto do coração já tinha instaurado uma relação de reconhecimento durante o caminho. Antes que os olhos se abrissem e a mente compreendesse, o coração já ardia dentro do peito.  Se por um momento os olhos se abrem e reconhecem aquele forasteiro como o Senhor, logo de seguida o Ressuscitado se subtrai a essa forma de reconhecimento visual. Mas, aí, o que emerge é a emoção que já havia sido gerada pela escuta e o afecto que havia movido ao desejo de um laço. É o registo afectivo do coração que colhe de modo duradouro a manifestação e que tece laços de reconhecimento que permanecem. É o coração tocado que gera o laço vital que permanecerá e que moverá ao testemunho.

É o registo afectivo do coração que colhe de modo duradouro a manifestação e que tece laços de reconhecimento que permanecem. É o coração tocado que gera o laço vital que permanecerá e que moverá ao testemunho.

O tempo presente, que tanto promove experiências e que tanto valoriza o registo do contacto afectivo e da adesão livre, mostra-se particularmente propício para relançarmos dinâmicas e práticas de iniciação e de pedagogia da fé que sejam capazes de recuperar o saber e o sentir do coração como caminho para o reconhecimento afectivo e sensato da fé. Paralelamente, será uma urgência cultural não permitir que o coração humano se dissipe num sentir que nada sabe nem quer saber sobre o definitivo, e que não quer comprometer com nenhum laço duradoiro, ao mesmo tempo que delega todo o saber do humano às várias expressões da razão técnica e instrumental que, verdadeiramente, nada sente. O ateísmo do coração, como lhe chama Pierangelo Sequeri, que «não reconhece qualquer Deus de justiça ao qual responder, nem qualquer Deus de amor ao qual corresponder», não é simplesmente um “problema” da Igreja. Os seus efeitos de degradação são bem mais amplos e exigem compromissos bem mais alargados. A ignorância afectiva, a agressividade gratuita, a incapacidade de compaixão, o cultivo narcisista de si mesmo, sem a atenção afectiva e afectiva ao outro diferente de si, que não se pode reduzir à satisfação próprias necessidades, são questões culturais e sociais de amplo alcance e de enormes consequências.

A ignorância afectiva, a agressividade gratuita, a incapacidade de compaixão, o cultivo narcisista de si mesmo, sem a atenção afectiva e afectiva ao outro diferente de si, que não se pode reduzir à satisfação próprias necessidades, são questões culturais e sociais de amplo alcance e de enormes consequências.

Contribuir para recuperar e cultivar o sentir e o saber próprio do coração é um dever pastoral urgente. Começará por despertar e cultivar a atenção, num tempo saturado de imagens, de sons, de experiências, para iniciar à sabedoria dos tempos mais lentos, da escuta mais atenta, da promoção a arte exigente que é o discernimento das ressonâncias afectivas. A iliteracia afectiva e espiritual será uma das lacunas mais graves do nosso tempo e da Igreja neste tempo, afectando de modo muito particular e preocupante as jovens gerações. A devoção ao Coração de Jesus não poderá ser suficientemente verdadeira se não levar a atender às linhas que cosem o coração humano. Porque o Coração de Jesus, sendo de carne, se falar, falará ao coração de carne capaz de escutar. Sendo sensível, tocará a sensibilidade do coração humano capaz de se comover e de ser dispor a laços de vida que permaneçam. Serão precisamente essa sensibilidade, essa escuta e essa arte de interpretação de ressonâncias afectiva a pedir, hoje, especial atenção, cuidado e arte de discernimento. Aqui também se jogará a actualidade da espiritualidade do Coração de Jesus, muito concretamente, na forma da «criação de espaços de interioridade e perceção de como a união entre oração e vida pode ser fecunda nos contextos em que os cristãos hoje vivem a sua fé», como se afirma na Nota Pastoral da Confª. Episcopal Portuguesa pelos 175 anos da fundação do Apostolado da Oração. Se o coração fala ao coração, o coração também fala do coração.

A iliteracia afectiva e espiritual será uma das lacunas mais graves do nosso tempo e da Igreja neste tempo, afectando de modo muito particular e preocupante as jovens gerações.

Excesso de amor. Ser amado precede e permite poder amar

Um terceiro traço de actualidade e de desafio pastoral da espiritualidade do Coração de Jesus, que aponta inequivocamente para o coração da fé cristã, identifico-o no amor “excessivo” que precede e que excede.

Recorrendo ainda a palavras certeiras de J. A. Mourão, Jesus afirma inequivocamente: «é a misericórdia que eu quero e não o sacrifício” (Mt 9,13). Daí que «os lugares sagrados nada contam ao lado duma atitude interior com efeitos espirituais e morais. Em nome do presente de Deus, surge também a exigência de nos entregarmos àquilo que devemos fazer e viver: a “urgência ética” da resposta ao irmão oprimido ou abandonado, a paciência espiritual que nos deve manter em vigia sem ver ainda a realização da promessa. O culto não tem valor em si: a memória cultual do Crucificado pede para ser “verificada” em memória viva numa ética da justiça, de reconciliação, de partilha». Se a devoção e culto ao Coração de Jesus não levar a esta verificação do amor misericordioso na vida é certo que, verdadeiramente, esse Coração não falou ao coração. Porém, aqui quero sublinhar o princípio e fundamento deste fruto. O meu activo amor aos irmãos, à vida e à criação tem a sua fonte no amor que me precede, que me traz à vida e me mantém em vida. É porque sou amado que posso – e devo – amar.

Se a devoção e culto ao Coração de Jesus não levar a esta verificação do amor misericordioso na vida é certo que, verdadeiramente, esse Coração não falou ao coração.

A devoção e o culto ao Coração de Jesus expõem-nos a esta precedência originária e constitutiva do amor de Deus por nós. Poderá acontecer que, em abstracto, estejamos de acordo. Porém, muita da nossa pregação e muitas das nossas práticas dizem algo de bem diferente, dando a entender que o amor de Deus é condicionado. Deus ama se eu O amar. Deus salva-me se eu me converter; justifica-me se eu me arrepender. Deus dá-se-me no corpo eucarístico se eu estiver preparado. Vem ao meu encontro se eu for previamente ao Seu encontro. Se pensarmos bem, é como se Jesus fosse a casa de Zaqueu só depois deste homem de pequena estatura dar metade dos seus bens aos pobres. É como se se deixasse aproximar, tocar e beijar pela mulher pecadora em casa de Simão só depois desta lhe garantir que deixaria a sua má vida ou como se, diante da adúltera na praça pública, para não a condenar como nenhum outro a condenara, tivesse de obter antecipadamente a garantia de voltar a ser fiel ao seu marido. Mas, como sabemos pelos relatos evangélico, estes encontros acontecem de modo bem diferente. É Jesus quem, em primeiro lugar, manifesta o desejo de ir a casa de Zaqueu. Será esse encontro inesperado e imerecido que mudará Zaqueu. É Jesus quem se deixa aproximar, tocar, beijar pela mulher de má vida. Será esta passividade a deixar que o amor desta mulher se manifesta assim, oferecendo inesperadamente a possibilidade a Jesus de revelar um Deus sensível, que escandalosamente se deixa tocar. Em relação à mulher adúltera, são as mãos vazias de pedras de Jesus, o justo, que moverão a mulher adultera a uma vida fiel.

É Jesus quem, em primeiro lugar, manifesta o desejo de ir a casa de Zaqueu. Será esse encontro inesperado e imerecido que mudará Zaqueu. É Jesus quem se deixa aproximar, tocar, beijar pela mulher de má vida. Será esta passividade a deixar que o amor desta mulher se manifesta assim, oferecendo inesperadamente a possibilidade a Jesus de revelar um Deus sensível, que escandalosamente se deixa tocar. Em relação à mulher adúltera, são as mãos vazias de pedras de Jesus, o justo, que moverão a mulher adultera a uma vida fiel.

S. Paulo recorda com clareza que Cristo nos salvou quando ainda éramos pecadores, manifestando, assim, o seu amor por nós (Rm 5,8). Na verdade, nós não seremos simplesmente salvos. Nós já fomos salvos, já estamos salvos! A salvação já foi alcançada, não por esforço ou mérito nosso, mas pelo amor gratuito de Deus, dito num coração exposto e ferido, do qual, segundo S. João, correm sangue e água. Fomos amados ainda antes de reconhecer esse amor. Fomos salvos quando ainda éramos pecadores. É a justiça de Deus que nos justifica e nos permite corresponder com uma vida mais justa. Não é a nossa suposta justiça que nos merece a justiça de Deus.  É essa santidade de Deus que nos santifica e nos dá a possibilidade de viver de modo mais santo. Não é o resultado do nosso esforço a tornar-nos dignos de tocar a santidade de Deus. É esse amor derramado nos nossos corações que nos comove e, comovidos, nos move a poder corresponder amando. Não é o nosso amor de filhos que nos faz merecer o amor do Pai. É no Filho Jesus que somos verdadeiramente filhos. Por isso, podemos realizar essa filiação, respirar essa pertença, fazer com que a vida real dê corpo efectivo a essa liberdade de ser filho. É porque somos precedidos pelo amor que podemos viver como filhos salvos; que podemos viver a liberdade e a criatividade de quem já é Filho, de construir o Reino, não como rivais ou como ressentidos, mas como filhos. É assim, como resposta a um dom excessivo e mais do que necessário, que a vida cristã passa a dar corpo e respiro a esta vida nova já recebida, a concretizá-la, não para merecer um prémio no final dos dias, mas como concretização crescente da identidade de filho no dia-a-dia da vida.

A salvação já foi alcançada, não por esforço ou mérito nosso, mas pelo amor gratuito de Deus, dito num coração exposto e ferido, do qual, segundo S. João, correm sangue e água. Fomos amados ainda antes de reconhecer esse amor. Fomos salvos quando ainda éramos pecadores. É a justiça de Deus que nos justifica e nos permite corresponder com uma vida mais justa. Não é a nossa suposta justiça que nos merece a justiça de Deus.  É essa santidade de Deus que nos santifica e nos dá a possibilidade de viver de modo mais santo.

De modo muito especial, o Papa Francisco tem acentuado, em diversos momentos e de inumeráveis formas, o rosto misericordioso deste amor que Deus é. Com a sua “insistência”, a propósito e a despropósito, a misericórdia vai revelando uma força particular para nos fazer compreender de modo mais íntimo e mais largo a verdade da fé e as práticas cristãs, apresentando-se como chave que abre os sigilos do Evangelho de Jesus, permitindo-nos compreendê-lo um pouco melhor e corresponder-lhe de formas mais vitais.

Quando se contempla Jesus, entrando pelo símbolo do seu coração, o que se encontra? Encontra-se a misericórdia. E a misericórdia, como o faz G. Lafont, a partir de S. Boaventura, traduz-se em excessus amoris, excesso de amor (Petit essai sur le temps du Pape François). De facto, o Coração de Jesus não é menos do que símbolo de um excesso tangível que nos alcança inesperada e imerecidamente, na nossa realidade existencial. Ora, o caminho eclesial que tenha este excesso de amor como princípio e fundamento para a compreensão do Evangelho e, ainda mais, para o discernimento das práticas cristãs e da missão de evangelização, está ainda muito longe de ser percorrido em radicalidade. Ir da misericórdia, entendida como vago sentimento ou simples exercício individual de ascese, para a assumir como categoria geradora de outra forma de ser Igreja é o caminho que importa percorrer. Por exemplo, o que significará compreender a verdade ou o pecado a partir da misericórdia? O que significará a autoridade, a liderança ou os carismas na Igreja que se compreendam e se realizem a partir do primado do amor misericordioso, como excessus amoris? Como será compreendida e realizada a missão de evangelização da Igreja num mundo ferido, cada vez mais plural e, em muitas geografias, cada vez mais secularizado, partindo deste excesso de amor? E o diálogo com a cultura e com as religiões? O amor misericordioso levará a Igreja, não só a compreender-se, mas a edificar-se, a assumir formas eclesiais e a realizar práticas cristãs, bebendo desta água fresca que jorra do coração de Jesus. Será ao coração de Jesus que o excessus amoris continuamente reenviará, como à sua fonte.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.