Bento XVI: filho da Igreja, não do tempo

Nunca iremos esquecer que “amar” é o último verbo que Bento XVI emprega nas palavras que profere neste mundo. Ao morrer, apenas diz: “Jesus, amo-Te”.

Nunca iremos esquecer que “amar” é o último verbo que Bento XVI emprega nas palavras que profere neste mundo. Ao morrer, apenas diz: “Jesus, amo-Te”.

Quando, em 2005, se tornou Bento XVI ao assumir a cátedra de Pedro, quem não pensou que ele viria a terminar a sua vida terrena no exercício desse múnus? Mas, na verdade, depois da sua renúncia em 2013, ainda recebeu a graça de habitar este mundo na qualidade de Papa emérito durante quase uma década. Desde o passado dia 31 de dezembro, muito se tem dito sobre Joseph Ratzinger. Certo, foi nesse fatídico dia que o vimos partir. E, por isso, é normal que se levante esse tom elogioso, próprio dos discursos laudatórios, que geralmente pulveriza os órgãos de comunicação social e as suas redes, nem que seja por breves dias que rapidamente se esquecem.

Hoje, quando o levamos a sepultar, resta-nos pouco mais do que rezar por ele, e com ele, ao Deus com quem agora se encontra, finalmente, face a face. Na verdade, era esse o seu desejo mais profundo, tal como teve ocasião de manifestar numa carta datada do início de 2022. Quem a ler, deparar-se-á com um homem a preparar a própria morte, qual evento decisivo que, por fé, acredita ser o derradeiro encontro com o “justo juiz” da sua vida. Sim, Joseph Ratzinger foi um homem ancorado em Deus, a sua rocha, o seu Senhor, o seu único Juiz. E, por isso, pouco lhe importavam os ataques pessoais, as calúnias, as difamações, como provavelmente pouco lhe digam agora as homenagens que hoje lhe fazemos – e que ele, sem dúvida, merece.

Quando lhe pediram para apresentar razões da sua fé católica, G. K. Chesterton referiu que não via outra forma de se libertar da penível escravidão de se ser apenas um filho do tempo. Quanto a Bento XVI, ele foi esse filho da Igreja que nunca se deixou escravizar pelas modas do tempo que passa. Talvez por isso nunca conseguiu, nem quis, ser uma star da cultura que monopoliza o universo das redes sociais. E, no entanto, mesmo mantendo-se fiel a uma doutrina que, para muitos, já cheirava a bofo, conseguiu conquistar paradoxalmente a estima de muitas pessoas, inclusive de quem o via como adversário, vindo a tornar-se num best-seller.

Sim, Joseph Ratzinger foi um homem ancorado em Deus, a sua rocha, o seu Senhor, o seu único Juiz. E, por isso, pouco lhe importavam os ataques pessoais, as calúnias, as difamações, como provavelmente pouco lhe digam agora as homenagens que hoje lhe fazemos – e que ele, sem dúvida, merece.

O homem que hoje recordamos como Bento XVI não precisava de ter chegado a Papa para ficar na História. É evidente que a herança dos seus 86 livros e 471 artigos marcaria sempre o futuro da Igreja independentemente da, assim chamada, “carreira eclesiástica”. A verdade, contudo, é que ele passou os últimos 45 anos da sua existência, aqui entre nós, assumindo cargos importantes no governo e no magistério da Igreja. No fundo, a sua vida acabou por ficar profundamente marcada pela “carreira eclesiástica” que ele seguiu por obediência e missão, em detrimento de um percurso académico que se adivinhava promissor. É-nos, por isso, impossível compreender a figura de Ratzinger sem nos referirmos a esse longo período romano, não fosse Bento XVI o primeiro Papa a ser eleito no século XXI e o primeiro Papa emérito que a Igreja jamais conheceu.

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Bento XVI na sua última audiência geral no Vaticano, no dia 27 de fevereiro de 2013.

Ao fazer hoje a memória da sua pessoa, agradecendo a sua vida e o legado que nos deixa, gostaria de destacar cinco aspetos dos gestos e palavras que ele proferiu na qualidade de Sumo Pontífice.

(1) Liberdade em relação às ideologias vigentes – Quem se liberta do tempo liberta-se de posições marcadamente ideológicas. É evidente que, pela sua curiosidade intelectual, procurou acompanhar os desenvolvimentos científicos, filosóficos e teológicos do seu tempo. Mas fê-lo sempre sem nunca absolutizar nenhuma corrente ou posição, procurando integrar a fé genuína no contexto histórico que lhe era dado viver. No Testamento Espiritual, que recentemente nos deram a conhecer, afirma ter acompanhado até ao fim da sua vida, durante pelo menos 60 anos, “o caminho da Teologia, em especial das Ciências Bíblicas”, acrescentando ter visto “ruir teses que pareciam inabaláveis, demonstrando-se serem simples hipóteses: a geração liberal (Harnack, Jülicher etc.), a geração existencialista (Bultmann etc.), a geração marxista”. E acrescenta: “Vi e vejo como do emaranhado das hipóteses tenha emergido e emerja novamente a razoabilidade da fé. Jesus Cristo é realmente o caminho, a verdade e a vida”.

Compreendemos, assim, por que razão há quem o tome por liberal e progressista, enquanto jovem teólogo, e conservador ou reacionário desde que assumiu o cargo de Prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé (na altura Congregação para a Doutrina da Fé). No entanto, Ratzinger nunca mudou de posição em função das promoções ou funções eclesiásticas que lhe foram atribuindo, mas sempre a partir do desejo de se manter fiel ao Evangelho. Se, enquanto jovem teólogo, procurou caminhos distintos do neotomismo daquela era, após o Maio de 68 apercebeu-se dos perigos de uma visão maniqueísta que nos situava em rutura em relação ao passado. A transformação que o próprio Ratzinger assumiu não se fez de ruturas radicais, dado que ele foi amadurecendo as suas posições teológicas no constante regresso às fontes mais genuínas do cristianismo.

Se, enquanto jovem teólogo, procurou caminhos distintos do neotomismo daquela era, após o Maio de 68 apercebeu-se dos perigos de uma visão maniqueísta que nos situava em rutura em relação ao passado. A transformação que o próprio Ratzinger assumiu não se fez de ruturas radicais, dado que ele foi amadurecendo as suas posições teológicas no constante regresso às fontes mais genuínas do cristianismo.

Manteve-se sempre próximo de Agostinho que, juntamente com Boaventura, escolheu estudar no sentido de se afastar de uma neoescolástica que dominava a teologia anterior ao Concílio. Como referiu Massimo Borghesi a este respeito, não se tratava tanto de querer fugir a uma doutrina que se considerava estar ultrapassada, mas sobretudo de abandonar uma forma a-histórica de a pensar, que parecia se ter cristalizado em fórmulas próprias à mundovivência do século XVI. E é também por isso que, mais do que um filho do seu tempo, ele sempre se manteve como um fiel filho da Igreja.

Foi essa procura pela autenticidade do Evangelho que lhe deu o equilíbrio e a ponderação das suas posições. A liberdade que Ratzinger demonstrava ter em relação às ideologias que se impunham em seu redor revela-se, também, na forma como ele interpretou o Vaticano II. A partir da “hermenêutica da reforma” e da “renovação na continuidade”, opôs-se explicitamente a uma “hermenêutica da descontinuidade e da rutura” que lhe parecia ser capaz de unificar dois pólos extremos que ainda ameaçam a Igreja hodierna. Com efeito, os liberais, de um lado, e os tradicionalistas, do outro, encontram-se numa leitura do Concílio em radical ruptura face à Tradição do passado. Enquanto uns olham para a era pré-conciliar como uma sucessão de trevas que devemos esquecer e ultrapassar, os outros idealizam uma Igreja que nunca existiu, cristalizando as práticas e formas de vida de um tempo que já passou. É neste contexto que Ratzinger não se limita a defender o Vaticano II. Mais do que isso: ele promove uma certa receção do Concílio, sem revoluções nem integrismos.

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A saudar os jovens na varanda da Nunciatura, em Lisboa, quando estes lhe foram cantar à janela, após a missa no Terreiro do Paço, a 11 de maio de 2010.

Os termos “reforma” e “renovação”, que Bento XVI adota, expressam essa Tradição viva, capaz de evoluir ao longo do tempo, enquanto percorre a História no constante regresso às fontes do cristianismo. A imunidade face ao pendor ideológico dos seus discursos manifesta-se nesse gesto de regresso às fontes da Tradição cristã, sem as quais facilmente ficamos reduzidos ao que o espírito do tempo quiser fazer de nós.

A imunidade face ao pendor ideológico dos seus discursos manifesta-se nesse gesto de regresso às fontes da Tradição cristã, sem as quais facilmente ficamos reduzidos ao que o espírito do tempo quiser fazer de nós.

É por isso que o Concílio não se reduz ao aggiornamento, isto é, à adaptação do discurso ao mundo moderno. É o facto do Vaticano II ser também ressourcement que leva Ratzinger a abandonar a Concilium, para fundar com Hans Urs von Balthazar, a revista Communio no início dos anos setenta. A palavra “comunhão” traduz, na sua perspetiva, uma visão de Igreja que vive para além das lógicas partidárias. E esse é, para ele, um aspeto essencial do cristianismo.

(2) Harmonia entre fé e razão – Segundo Joseph Ratzinger, o cristianismo situa-se histórica e filosoficamente numa certa continuidade com a tradição grega de defesa do logos em detrimento do mythos. Quando os primeiros cristãos, inseridos na mundovivência helénica, se viram confrontados com a questão “qual é o vosso Deus?”, se Jupiter ou Hermes, eles responderam: “a nenhum dos deuses que vocês adoram, mas única e exclusivamente àquele Deus (…), àquele ser supremo do qual falam os filósofos” (Introdução ao Cristianismo, 2005, p. 99). Para Ratzinger, o cristianismo resulta, tal como a Europa, desse encontro harmonioso entre Jerusalém e Atenas.

Trata-se da “opção” da Igreja primitiva pelo logos; uma opção que não se traduz apenas no facto de a Igreja dever acompanhar os futuros progressos científicos. Mais do que isso: a própria investigação científica é legitimada pela fé de quem crê num Deus criador de um universo inteligível. Com efeito, na medida em que todos os seres foram criados a partir de um único logos, as árvores deixam de crescer em função do humor do seu espírito, assim como as chuvas deixam de cair por birra de uma vontade arbitrária. Por ter nele uma ordem inscrita, o mundo torna-se compreensível e, dentro de certos limites, previsível. Neste contexto, a obra de Bento XVI pode surpreender pelo facto de não se opor, tão radicalmente quanto o que seria esperado, ao Iluminismo.

Esta convergência entre filosofia e Revelação permite que a razão natural alargue os seus horizontes abrangendo âmbitos que vão para além das ciências exatas e empíricas. Nesse sentido, a harmonia entre fé e razão também se enquadra no combate que Ratzinger travou contra certas ideologias do seu tempo: o cientismo moderno, por um lado, para o qual só importa o que as ciências puras podem vir a conhecer, e os fundamentalismos religiosos, por outro, sempre prontos a impor as suas doutrinas através do exercício da violência. Na verdade, se Deus não pede nada que seja contrário ou incompatível com a razão natural, então a violência em nome de Deus é absurda ou blasfematória, tal como Bento XVI proferiu, muito antes de Francisco, na aula magna de Regensburg.

Na verdade, se Deus não pede nada que seja contrário ou incompatível com a razão natural, então a violência em nome de Deus é absurda ou blasfematória, tal como Bento XVI proferiu, muito antes de Francisco, na aula magna de Regensburg.

Compreendemos, assim, como a harmonia entre fé e razão se liga profundamente à “cultura de diálogo”, tão apregoada no atual pontificado de Francisco. De facto, na esteira do seu predecessor João Paulo II, Bento XVI aprofundou o ecumenismo entre as diversas igrejas e comunidades cristãs, da mesma forma que promoveu o diálogo inter-religioso. A opção pelo logos incute necessariamente a confiança no diálogo entre pessoas de diferentes culturas e credos. Se o exercício da razão converge para a Verdade, torna-se possível comunicar ideias e chegar a acordos através do diálogo entre pessoas de culturas distintas. Foi o que Bento XVI expressou claramente no Bundestag em 2011. O encontro de Assis e a celebração ecuménica no seu país natal, em 2011, bem como a visita à comunidade hebraica de Roma, em 2010, ou a viagem apostólica à Turquia, em 2006, são inteligíveis à luz desta doutrina da participação de todos no logos divino.

Como Wojtyła, Ratzinger pertence à geração que assistiu ao terror do nazismo e do comunismo soviético em solo europeu. A visão do cristianismo a partir dessa opção primordial da Igreja pelo logos também se alimenta do desejo por uma humanidade pacificada, na qual os diversos indivíduos chegam à Verdade pelo diálogo, e não pela violência. É nesse sentido que devemos interpretar os seus discursos contra um mundo onde se vive como se Deus não existisse. Seria redutor ver nesses textos o ressentimento de um velho do Restelo que perdeu a capacidade de habitar a nossa época. De facto, quando critica a “ditadura do relativismo”, Bento XVI deseja que a verdade não se imponha pela força. Ao chamar a atenção para o perigo de perdermos as referências, ele procura evitar que se estabeleça, entre nós, a lei do mais forte. No fundo, essa é a lei do relativismo, segundo o qual o sujeito humano, plenamente criador e senhor de si mesmo, não se deve sujeitar a nada nem a ninguém.

O problema de vivermos para além do bem e do mal reside no facto de, assim, nos tornarmos pessoas que dominam, não sem violência, a natureza, destruindo-a, quais superhomens suficientemente fortes para imporem a sua vontade ao mundo e aos outros. Num mundo desses, não há lugar para a comunhão onde a vida desabrocha na relação harmoniosa com os outros e com o universo.

É por isso que os discursos contra a “ditadura do relativismo” e do mundo sem Deus não podem ser lidos sem se ter em conta a crítica que Bento XVI sempre dirigiu contra a lógica capitalista dos mercados desregulados. É também aí que ele antecipa muitos aspetos do atual magistério de Francisco, nomeadamente o que se refere ao cuidado pelos problemas ecológicos e ambientais.

É por isso que os discursos contra a “ditadura do relativismo” e do mundo sem Deus não podem ser lidos sem se ter em conta a crítica que Bento XVI sempre dirigiu contra a lógica capitalista dos mercados desregulados. É também aí que ele antecipa muitos aspetos do atual magistério de Francisco, nomeadamente o que se refere ao cuidado pelos problemas ecológicos e ambientais.

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Bento XVI na Jornada Mundial da Juventude, em Madrid, em agosto de 2011.

(4) A beleza do amor – E assim chegamos ao tema central das suas encíclicas: caritas. Não fosse o amor a única experiência de eternidade que podemos vivenciar neste mundo, finito e contingente, e ficaríamos admirados por um Papa dizer, sem pudor nem reservas: eros. A sua primeira encíclica Deus caritas est (2005) ficará certamente para a História do magistério da Igreja. Nela, a virtude teologal do amor cristão surge como unidade de eros e ágape. A sua posição equilibrada não lhe permite menosprezar nenhuma das expressões do amor humano. Se o amor é “uma única realidade” (Deus caritas est §8), trata-se de uma experiência humana com dimensões distintas. Há o dar e o receber, o entregar-se ao outro e acolher o dom que dele se recebe. E tanto é assim no amor puramente humano como na experiência religiosa de quem se sente amado por Deus. Estar unido ao ente amado, que por sua vez nos ama, tanto é possuí-lo como deixar-se possuir por ele. É por isso que o amor oblativo não se opõe ao amor do desejo possessivo da atração. Ágape encontra a sua condição de possibilidade no eros, e este degenera em violência sem o amor oblativo. Quando o prazer de possuir o outro se realiza no ato de a ele se oferecer completamente, a comunhão autêntica acontece. Nunca iremos esquecer que “amar” é o último verbo que Bento XVI emprega nas palavras que profere neste mundo. Ao morrer, apenas diz: “Jesus, amo-Te”.

Ao colocar o amor no centro, Bento XVI ultrapassa a lógica da troca comercial que nos reduz a objetos uns dos outros num tecido social de relação perversas. “Se o amor é inteligente, sabe encontrar também os modos para agir segundo uma previdente e justa conveniência, como significativamente indicam muitas experiências no campo do crédito cooperativo” (Caritas in veritate §65). Vemos, então, como Bento XVI, ao colocar o amor como tema central da sua reflexão teológica, é capaz de propor um olhar crítico da ordem económica vigente, propondo alternativas realistas.

Além disso, a centralidade do amor tem que ver com a dimensão estética da fé. Amar também se traduz na experiência de quem se deixa apaixonar pela beleza que podemos experimentar nesta vida. Ao ouvir música, Bento XVI fazia-se próximo de Deus cuja presença sentia através da beleza que também acontece neste mundo, passageiro e finito. Por isso, nunca se coibiu a si mesmo do prazer de tocar piano. Juntamente a dois dos grandes teólogos do seu tempo, Karl Barth e Hans Urs von Balthasar, assumiu uma paixão particular por Mozart. Num discurso proferido em 2007, após ter escutado o Requiem de Mozart, afirmou: “Em Mozart tudo é harmonia perfeita, cada nota, cada frase musical é assim e não poderia ser de outra forma (…) a «serenidade mozartiana» tudo envolve, em cada momento”. Nas suas palavras, a experiência estética é assim acolhida como “um dom da graça de Deus”, onde transparece “a resposta luminosa do Amor divino, que dá esperança”.

(4) Escândalos – Quando revisitamos o pontificado de Bento XVI, é difícil não referir os escândalos que tanto o desgastaram nas lides da Igreja. Para além do Vatileaks, ele teve ainda de enfrentar o enorme flagelo dos abusos perpetuados no seio de instituições católicas. Revelou, nesse contexto, ter coragem para introduzir novas medidas, punindo os culpados, como o célebre padre Maciel, fundador dos Legionários de Cristo. A carta que o Papa emérito publicou após a cimeira que decorreu no Vaticano em fevereiro de 2019 mostra como Bento XVI se preocupava enormemente em superar este flagelo abissal que põe em causa a credibilidade da Igreja.

(5) Humildade – Chegamos assim à humildade que transparece no olhar que o seu rosto manifesta. Não me esqueço da forma como Bento XVI se apresentou, pela primeira vez, ao povo de Deus enquanto Papa: como um “simples e humilde trabalhador na vinha do Senhor.” Quando hoje se fala tanto em “clericalismo”, as palavras daquele breve discurso inaugural ecoam como expressão do desejo de uma Igreja que vive ao serviço do Outro e dos outros; ao serviço de Deus, do próximo e da comunidade humana; uma Igreja que, em vez de se servir dos outros para se manter no poder, se coloca ao serviço da fé e dos desafios que nos são dados viver.

A humildade que o discurso inaugural havia proclamado realizou-se integralmente nesse gesto da renúncia final. E, aberto o precedente, talvez se tenha instaurado uma nova prática na Igreja em relação ao papado e aos cargos de poder.

Na esteira de Agostinho, para quem a humildade constitui uma virtude fundamental da fé em intrínseca conexão à Verdade, Bento XVI foi um papa que assumiu, sem vergonha, a sua fraqueza. Quem pode esquecer o gesto da renúncia naquela manhã de 11 de fevereiro de 2013? Ninguém duvida do facto de o seu pontificado ficar para sempre marcado pelo gesto que o conclui. A humildade que o discurso inaugural havia proclamado realizou-se integralmente nesse gesto da renúncia final. E, aberto o precedente, talvez se tenha instaurado uma nova prática na Igreja em relação ao papado e aos cargos de poder.

Muito se especula sobre os motivos da sua renúncia. Da minha parte, não tenho razões para desconfiar das suas palavras. No discurso curto e marcante da renúncia, ele próprio afirmou: “cheguei à certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas para exercer adequadamente o ministério petrino”. Que mais é preciso dizer?

Essa perda de forças e de vigor manifesta-se na obra que Jago intitulou Habemus Hominem. Trata-se de uma escultura do Papa emérito na qual Bento XVI transparece em toda a sua humanidade, tão frágil quanto bela. Jago quer apenas manifestar a humildade da renúncia. Contemplar o olhar penetrante daquele rosto rugoso, admirar o realismo do seu corpo imperfeito e desgastado, que se reveste de um tecido fino, qual pele áspera a ponto de se rasgar na leveza do vento invisível, não nos leva apenas a aceitar a nossa condição de pessoas vulneráveis num mundo limitado e finito. Para além de sermos estimulados a reconhecer a vulnerabilidade de quem já viu muito tempo passar, ao contemplar a obra de Jago, também nos deixamos maravilhar pela debolezza humana.

A humildade que o discurso inaugural havia proclamado realizou-se integralmente nesse gesto da renúncia final. E, aberto o precedente, talvez se tenha instaurado uma nova prática na Igreja em relação ao papado e aos cargos de poder.

Assim, a fragilidade da nossa condição não se reduz ao fatalismo da nossa morte: abre-nos também à possibilidade de amarmos e de sermos amados. Ver beleza naquele busto de um Bento XVI nu de todo o poder, despido de toda a força, não se confunde com a pornografia dos realismos mundanos. Trata-se, antes, de aceitar e integrar a condição de dependência na abertura ao Outro, que nos pode salvar, e aos outros com quem podemos ir habitando este mundo a partir de encontros de comunhão.

Aliado às mãos que rezam, o olhar pacificado de Bento XVI que Jago esculpiu alimenta a nossa fé, a nossa esperança e o amor que ainda podemos realizar nesta vida. É assim em comunhão, reunidos em torno de Bento XVI, que hoje, no dia do seu funeral, melhor lhe podemos prestar homenagem. Paz à sua alma.

 

Fotografias: Ricardo Perna

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.