De um modo geral todos buscamos a felicidade, através do sucesso, da riqueza ou de aventuras mais ou menos desafiadoras, mas, frequentemente, nos esquecemos que muitas destas conquistas são transitórias e nos perdemos na sua procura, vivendo como se fossemos imortais.
O aumento da longevidade e os permanentes avanços da medicina (imunoterapia, terapêuticas alvo, transplantação de órgãos e tecidos, oxigenação por membrana extracorporal ou ECMO, muitas vezes falada no contexto da pandemia Covid-19, entre outros), fortalecem o mito de que é obrigatório curar ou controlar a doença e lutar contra a morte. E apesar de muitas pessoas com doenças incuráveis e avançadas serem submetidas a cirurgia, quimioterapia, imunoterapia e outros tratamentos de intenção meramente paliativa, é ainda grande a relutância em falar de Cuidados Paliativos.
A vida é, no entanto, muito mais do que simplesmente sobreviver. De facto, a maior parte das pessoas com doença avançada e incurável que tenho o privilégio de acompanhar numa equipa especializada de Cuidados Paliativos não deseja viver a qualquer preço. É verdade que a esmagadora maioria das pessoas não quer morrer. Mas não basta viver, é preciso viver bem, com sofrimento tolerável.
Sendo o sofrimento uma experiência única e individual, só o próprio pode dizer se é ou não tolerável. E quando o sofrimento resulta de doença ou lesão grave, para que os doentes decidam de forma cuidadosa e esclarecida a terapêutica a seguir, impõe-se que os profissionais de saúde os informem de forma compreensível sobre a doença e os tratamentos disponíveis, incluindo os Cuidados Paliativos.
A maior parte das pessoas com doença avançada e incurável que tenho o privilégio de acompanhar numa equipa especializada de Cuidados Paliativos não deseja viver a qualquer preço.
Aplicáveis a pessoas com sofrimento intenso decorrente de doença ou lesão grave (isto é, qualquer doença aguda ou crónica que causa dano ou limitações significativas e pode levar a incapacidade, deficiência e/ou morte), os Cuidados Paliativos (CP) são cuidados holísticos e ativos, focados na prevenção e alívio do sofrimento, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida do doente e família/cuidadores. Combinando ciência e humanismo, estes cuidados aplicam-se a pessoas de qualquer idade e devem estar presentes em todos os níveis do sistema de saúde (cuidados de saúde primários, hospitalares e cuidados continuados integrados). Segundo a European Association for Palliative Care (EAPC), devem considera-se pelo menos dois níveis de cuidados e, em Portugal, de acordo com o Plano Estratégico para o Desenvolvimento dos CP 2017-2018 e 2019-2020 considera-se:
1. “Abordagem paliativa”, que engloba ações paliativas e intervenções que requerem uma resposta mais estruturada, mas não especializada em CP e deve ser transversal a todos os profissionais de saúde;
2. “Cuidados Paliativos especializados”, que são cuidados de saúde ativos e rigorosos, prestados por profissionais com formação avançada e treino adequado, em equipas ou unidades multidisciplinares especializadas dos Cuidados de Saúde Primários (equipas comunitárias de suporte em CP ou ECSCP), Hospitalares (equipas intra-hospitalares de suporte em CP ou EIHSCP, consulta externa e unidades de internamento CP ou UCP) ou na Rede de Cuidados Continuados Integrados (UCP-RNCCI). Estas equipas acompanham doentes com alto grau de complexidade, dão consultadoria a outros profissionais de saúde e desempenham funções de formação e investigação em CP.
Indicados em função das necessidades dos doentes e não das doenças, os CP podem aplicar-se ao longo de toda a trajetória de doença e em simultâneo com tratamentos modificadores da mesma. Dedicam, no entanto, particular atenção à fase final da vida.
Apesar da morte fazer parte da vida, morrer é uma “empreitada” difícil que a nossa sociedade tem dificuldade em aceitar e tende a esconder. Efetivamente, fazemos campanhas para erradicar algumas doenças e gastamos recursos imensos para tratar outras, levamos a correr para os hospitais pessoas em tratamento dirigido apenas ao conforto e, não raras vezes, são realizadas manobras de reanimação a pessoas em fim de vida, mas esquecemo-nos frequentemente que todos morremos um dia.
Dedicar aos que se encontram na fase final da vida a mesma atenção e grandeza de cuidados que é dedicada aos que nela entram é uma das preocupações das equipas especializadas de Cuidados Paliativos.
Dedicar aos que se encontram na fase final da vida a mesma atenção e grandeza de cuidados que é dedicada aos que nela entram é uma das preocupações das equipas especializadas de Cuidados Paliativos. Falar da morte e do morrer com a mesma abertura e simplicidade com que falamos de nascer e viver deveria ser uma preocupação de todos.
Promover uma comunicação aberta sobre o fim de vida entre o doente e a família e pôr fim à chamada “conspiração do silêncio” é também um dos desígnios das equipas de especializadas de CP. Quantas vezes, infelizmente, somos ainda confrontados com a afirmação suplicante da família: “doutora o meu familiar não sabe o que tem …”, como se o doente não experienciasse a doença! Com a preocupação de proteger o doente, a família evita falar-lhe da doença e, por seu lado, o doente evita falar das suas dificuldades e sentimentos com a família para não a preocupar, isolando-se cada vez mais no seu mundo.
Contrariamente ao que muitos pensam, de um modo geral a comunicação aberta e franca com os profissionais de saúde e as pessoas mais significativas, ao permitir ao doente falar do fim de vida que se aproxima, dá-lhe a possibilidade de decidir onde e como quer consumir o tempo que lhe resta: a lutar contra a morte; a organizar a sua situação financeira e a da família; a estar com as pessoas que lhe são mais queridas ou simplesmente a viver cada momento. Dá-lhe ainda a possibilidade de ter momentos de gratidão, perdão e transcendência, realizando as chamadas “tarefas de encerramento da vida”, caraterizadas por expressões como: “gosto muito de ti”; “perdoa-me”; “perdoo-te”; “obrigado” e “adeus”.
Ter consciência da nossa finitude e aceitar as limitações da existência humana permite-nos viver a vida intensamente. E falar abertamente sobre a vida e a morte com as pessoas que nos são mais próximas, permite-nos saber que, apesar de causar tristeza, a nossa morte não é um fracasso.
Um bom exemplo do acima exposto está espelhado no livro “Chasing dayligt: How my forthcoming death transformed my life”, de Eugene O’Kelly [editor: McGraw-Hill, 2008]. Diretor executivo de uma grande empresa americana de consultadoria, informado de que tinha um tumor cerebral agressivo e inoperável, com um prognóstico vital de três meses, procurou viver “a melhor morte possível”. Como bom gestor que era, O’Kelly fez a lista de tarefas que se segue e que se esforçou por cumprir no tempo de vida que lhe restava: 1. ordenar a vida jurídica e financeira; 2. rever e encerrar relacionamentos com familiares, amigos, colegas de trabalho ou de escola; 3. simplificar; 4. viver cada momento; 5. criar e manter-se aberto, a “momentos perfeitos”; 6. iniciar a transição para a fase seguinte (a morte); 7. planear o funeral. “Chasing Daylight” é assim uma confirmação de que vale a pena viver intensamente a vida até o fim e é possível encerrá-la com a sensação de “missão cumprida”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.