O desenvolvimento e disseminação das tecnologias digitais vai transformando, a um ritmo cada vez acelerado, o mundo em que habitamos. As utopias tecnológicas das últimas décadas prometiam soluções à distância de um click para os problemas da humanidade. Na verdade, o impressionante desenvolvimento das tecnologias digitais faz parecer arcaicas as descrições futuristas que abundam nas obras de ficção científica. Em muitos aspetos, a nossa vida ficou bem mais fácil, não há dúvida. Repartições públicas, lojas, bibliotecas, «pontos de encontro» virtuais entram-nos (quase literalmente) pela casa adentro.
Não é preciso ser particularmente astuto, no entanto, para perceber que a era digital trouxe consigo perigos inesperados e não menos reais que os do «mundo físico». Ocorre-me comparar a internet uma grande cidade. As cidades grandes são lugares fascinantes, onde podemos encontrar todo o tipo de oportunidades e divertimentos. Ao mesmo tempo, podem ser lugares frios, desumanos e perigosos, onde podemos perder-nos, sobretudo se arriscamos entrar nas ruas mais sombrias e esconsas. Quem chega pela primeira vez a uma grande cidade, precisa adaptar-se ao novo contexto, aprendendo a desfrutar das múltiplas oportunidades e evitando cautelosamente os lugares perigosos. Somos todos habitantes recém-chegados do mundo virtual, um mundo que nós próprios vamos construindo, mas que já não conseguimos controlar totalmente. É neste mundo que precisamos aprender a viver e os hábitos bons («virtudes») que até agora nos serviam já não são eficazes.
Repito: urge aprender a viver bem no «mundo virtual», e as competências e hábitos que fomos adquirindo ao longo da nossa educação não nos bastam. A reflexão ética em torno das tecnologias digitais tem assumido um enfoque sobretudo deontológico. Fala-se muito de direitos e deveres, formulam-se novos códigos deontológicos, aprovam-se novas leis. E tudo isto faz falta, muita falta. Mas não chega. Não basta colocar sinalética adequada no mundo virtual. É preciso aprender a viver bem neste novo mundo. Dito de forma simples, precisamos todos descobrir novas virtudes adequadas à era tecnológica. Shannon Vallor, no seu livro Technology and the Virtues (Oxford University Press, 2016), chamou-lhes virtudes tecnomorais. Mesmo quando têm o mesmo nome que as velhas virtudes classificadas por Aristóteles e S. Tomás de Aquino, as virtudes tecnomorais precisam ser cultivadas no novo ambiente digital. Vallor elabora uma taxonomia de virtudes tecnomorais que são, na sua opinião, particularmente relevantes no contexto digital que habitamos: honestidade, autodomínio, humildade, justiça, coragem, empatia, cuidado, civilidade, flexibilidade, perspetiva, magnanimidade e sabedoria. Algumas destas virtudes parecem ter pouco que ver com a utilização das tecnologias digitais. E, no entanto, o mundo digital é um mundo real, habitado por pessoas reais, que trazem consigo as suas luzes e as suas sombras.
Vejamos, por exemplo, a virtude do autodomínio. Usar as coisas com conta, peso e medida nunca foi fácil. Na era digital também não é. Como um simples exercício de tomada de consciência, sugiro ao leitor que tente contar, se for capaz, o número de vezes que, ao longo de um dia, interrompeu o que estava a fazer para se ligar à nuvem através do seu tablet, do seu laptop ou do seu smartphone. Caso aceitássemos este desafio, muito de nós teríamos de admitir que usamos a internet muito mais vezes do que o necessário, por vezes de forma compulsiva. O caráter «viciante» da internet não é casual. As tecnologias digitais são desenhadas com o objetivo de criar dependência. Sem nos apercebermos, somos sujeitos a inúmeras técnicas de manipulação que pretendem justamente transformar-nos em utilizadores compulsivos da internet. A maior parte de nós não chegará a desenvolver uma dependência patológica, mas não é necessário chegar a este extremo para sentir na pele os efeitos nocivos de uma utilização desordenada das tecnologias digitais da informação e da comunicação: perda de tempo, dispersão, distração, superficialidade. Foi justamente a consciência de que o uso desordenado das tecnologias digitais está a destruir os nossos hábitos de atenção que motivou os autores do projeto The Online Manifesto, financiado pela União Europeia, a propor que as nossas capacidades de atenção deveriam ser alvo de proteção legal: «o respeito pela atenção deveria estar ligado a direitos fundamentais tais como a privacidade e a integridade física… as nossas tecnologias deveriam respeitar e proteger as nossas capacidades de atenção».
Na sua lista, Vallor elenca algumas virtudes que parecem impossíveis de exercitar no mundo digital: é o caso da empatia e do cuidado. Habitualmente associamos estas virtudes à interação pessoal, ao contacto visual, ao toque, à subtileza das expressões faciais. E tudo isto está em grande medida ausente do mundo virtual. As tecnologias digitais da informação e da comunicação, sobretudo as redes sociais, parecem produzir uma espécie de «despersonalização», como se os frequentadores da «nuvem» não fossem pessoas reais, que merecem ser tratadas com respeito e delicadeza. Escondidos por detrás dos seus écrans, encapuçados pelo anonimato, muitos habitantes do mundo virtual violam as mais básicas regras de cortesia, espalham boatos, dizem mentiras, fazem bullying. O mundo digital é habitado por pessoas reais e o que se faz e diz no mundo virtual afeta as suas vidas reais. Por isso, é urgente descobrir o que significam, no mundo digital, as virtudes da empatia, da civilidade e do cuidado. Não para elaborar um conhecimento teórico, mas para as exercitar.
É fundamental cairmos na conta, por último, que os habitantes do mundo digital formam uma grande comunidade que precisa de encontrar formas de se organizar de forma saudável e justa. Tal não pode acontecer sem que cada utilizador das tecnologias de informação e comunicação digitais desenvolva as virtudes cívicas próprias de uma «cidadania digital». Vários autores têm alertado, por exemplo, para uma perigosa «espiral de silêncio» nos ambientes digitais: a superficialidade, a falta de sensatez e a agressividade das opiniões de uma minoria transforma as plataformas sociais em lugares poluídos, banais, hostis, o que acaba por ter um efeito desencorajador e dissuasor para a maioria dos utilizadores. É fundamental, neste sentido, desenvolver virtudes cívicas que nos permitiram construir uma comunidade digital segura, justa e saudável.
Habitar o mundo digital está a deixar de ser uma opção: à medida que o séc. XXI avança, a cidade digital vai ganhando forma. É tarefa fundamental de cada um de nós aprender a viver de forma saudável nesta cidade, pois só por si a tecnologia não nos vai fazer felizes.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.