Uma viagem pelo Império do Sentir

«Segue o que sentes» é habitualmente usado como sinónimo de liberdade para fazer escolhas conforme "o que diz o coração". Mas, e se um sentimento tiver várias fases? Eis o mote (implícito) deste pequeno ensaio.

Em 1936, Alfred Ayer publicava o seu livro Language, Truth and Logic, no qual refletia sobre o quanto, muitas vezes, as decisões morais são movidas não por razões teóricas mas por emoções: preferimos o que nos satisfaz, e evitamos o que nos magoa. Assim se cunhou a noção de “emotivismo”. A questão foi já largamente debatida por diversos autores, entre os quais o filósofo norte-americano Alasdair MacIntyre. Que consequências sociais, políticas e éticas terá uma cultura emotivista?

Que o “sentir” se impôs nas nossas sociedades, parece difícil de contestar. Tudo se mede, cada vez mais, em termos afetivos. As relações; o trabalho; a vivência da felicidade e o sentido da existência: tudo é avaliado em função do grau de satisfação ou de insatisfação que produz, e é com base nesse critério que se tomam decisões, grandes ou pequenas.

O leitor poderia pensar que, depois desta descrição crua, eu passaria de imediato a uma oposição direta a este “império do sentir”. Não será exatamente assim. O que proponho é o seguinte: é ótimo “ouvir” as emoções, mas importa fazê-lo com inteligência e num arco temporal. Os afetos são um modo de relação com as coisas e, nesse sentido, um instrumento para as podermos (re)conhecer. Mas, se as coisas (pessoas, situações, paisagens) são dinâmicas e multifacetadas, não será de esperar que a interação com elas também produzirá várias emoções diversas, ao longo da história de relação com elas? Talvez não seja estranho (nem mau) que a relação com as coisas produza um “arco de emoções diversas”. Para conhecer a realidade, nas suas múltiplas “estações”, talvez seja mesmo necessário ter estômago para enfrentar o facto de que ela vai suscitar muitos sentimentos (por vezes contraditórios)… Dito assim, talvez esta ideia pareça abstrata. Vou, por isso, decantá-la em vários pequenos passos.

passo nº 1: pensar ou sentir?

O modo de compreender a relação entre reflexão e sentimento não foi, nem é, sempre linear. Aliás, basta olhar para os clichés das séries televisivas para confirmar esta ideia. Boa parte do humor da série The Big Bang Theory assentava no estereótipo “cientista = racionalidade = pouca inteligência emocional”. No extremo oposto, a personagem Phoebe, da série Friends, encarna o estereótipo da pessoa “hipersensível”: artística, afetiva, mística, com uma generosidade anárquica.

De facto, uma boa parte da história das ideias poderia ser contada a partir do aparente conflito entre pensar e sentir. O que nos torna mais humanos: a nossa capacidade de compreendermos as coisas e de tomar decisões ponderadas (eixo racional), ou antes a nossa capacidade de sermos compassivos e de saborear a vida apaixonadamente (eixo afetivo)? Perguntarão alguns (e bem, creio eu): não será possível conciliar os dois pólos? Teoricamente, sim. Mas imagine uma conversa entre uma Phoebe e um cientista, e logo concluirá que não se trata de um desafio fácil. E não o é tanto a nível pessoal (quem nunca experimentou a tensão entre princípios e emoções, na hora de tomar decisões?) nem cultural.

As raízes profundas deste fosso afloram de tempos a tempos na linguagem. Com frequência, dizemos que uma pessoa racional é “fria”, ou usamos o adjetivo “sensível” como eufemismo de fragilidade. Estas expressões ganharam conotações de género: as mulheres eram descritas como sendo emocionais (logo, fracas), ao passo que os homens eram os agentes racionais (logo, fortes). Finalmente, as próprias atividades humanas foram invadidas por esta oposição: ciências de um lado; artes do outro. [Obviamente, esta descrição caricatural serve apenas para ilustrar a tensão persistente entre “razão” e “sentimento”.]

Apresento dois casos onde esta tensão está presente, de modo mais ou menos explícito. Primeiro: a pandemia das opiniões. Uma das bênçãos indiscutíveis da democracia é o respeito pela individualidade das pessoas (mesmo se ainda há muito caminho a percorrer). Contudo, «não há bela sem senão». E, nos dias que correm, esse “senão” chama-se “opinião”. O desafio da vida em sociedade é grande: como conciliar o respeito pela individualidade das pessoas (e, por conseguinte, o seu direito inalienável de pensar livremente), por um lado, com o respeito pelos “factos”? Será possível traçar uma fronteira entre espaço privado (das opiniões) e espaço público (dos factos)? Como se quem tutela o espaço público não fosse também movido por opiniões… Penso que a questão se joga a outro nível: (1) no cultivo de um espírito crítico informado, no que toca aos indivíduos; (2) na reconstrução de estruturas credíveis, transparentes e capazes de comunicar eficazmente que devolvam a confiança (que perdemos) nas instituições.

Um caso flagrante onde esta crise se fez notar prende-se com a disseminação de desinformação nas redes sociais durante a pandemia (problema identificado no Relatório Anual de Segurança Interna 2021). Com todo o respeito pelos indivíduos: às vezes a nossa opinião está errada, simplesmente.

Segundo: a pandemia do sentimento de ofensa. Ligado à “opinião” está o “sentimento de ofensa”. Dizem vários comediantes norte-americanos: «Se queres encontrar motivos de irritação, abre o Twitter». Sem dúvida que há muitas formas de ofensa, e a violência verbal contra outrem é perigosamente fácil. Contudo, nem todas as discussões são sinal de má fé. A realidade é complexa: por isso mesmo é que requer conversa e discussão. O sentir-se imediatamente “ofendido” perante uma ideia discordante mina qualquer possibilidade de diálogo. Partir do “sentimento de ofensa” curtocirtuita a relação entre pensar e sentir. Nem todo o incómodo é fruto de ofensa: pensar também dói… Se é urgente erradicar a violência contra a diferença, não o  é menos encontrar formas saudáveis de debater sobre o bem-comum (que é o terreno utópico da convivência entre pessoas com vontades diferentes).

 

passo nº2: as artes como exercício de reflexão sensível

Será que as artes nos podem ajudar a coser reflexão e sentimento? Aos olhos de muitos, os artistas vivem no universo da emoção. Sim: é verdade que os “objetos” que produzem nascem de um convívio sensível com as coisas e constituem, eles próprios, um convite ao “sentir”. Mas penso que esta visão “imediata” (do momento da inspiração e da contemplação da obra de arte, por exemplo num museu) deixa de fora algo de fundamental da experiência do artista: o seu longo percurso de reflexão sobre as coisas que vive e sente.

Basta ouvir um artista falar (um ator, um instrumentista, um criador) para perceber o quanto a sua experiência gira em torno do trabalho de pensar. A obsessão de Georges Rouault pelos palhaços; ou de David Lynch pelas nossas taras; ou de Scorsese pela diáspora italiana nos EUA; ou de Haruki Murakami pelos gatos e sonhos; ou de Wolfgang Laib pelos pólens; ou de Lourdes de Castro pelas sombras: tudo isto é reflexo de um lento e insistente processo de compreensão da vida, deixando-se guiar pelas impressões do dia-a-dia. Ou seja, há uma certa teimosia de sentir pensadamente, uma persistência de interrogar a vida, uma resistência para enfrentá-la nas suas horas doces e amargas.

À primeira vista, a valorização da emoção poderia ser vista como sinónimo de inconstância. Sentimos tanta coisa; e isso precipita-nos em tantas decisões (nem sempre boas). Contudo, quando olhamos para as artes, encontramos uma outra relação com o “sentir”. Vulcânica, livre, irreverente: claro que sim. Mas, simultaneamente, comprometida, trabalhadora, “científica” na sua atenção aos detalhes das coisas de dentro e de fora.

Na arte, as emoções parecem aliadas à paciência, isto é, à capacidade de atravessar um sentimento em toda a sua duração, como quem busca um tesouro do lado de lá do arco-íris. Não é o artista acredita que haja um baú do lado de lá. Simplesmente, ele sabe que o arco-íris é um tesouro que vale o sacrifício de uma longa travessia.

Resumindo: o problema talvez não esteja em dar ouvidos às emoções e de “seguir o que se sente”. Talvez a dificuldade esteja em aprender a ouvi-las do princípio ao fim, para apreciar as suas metamorfoses. Porque não há emoções “puras”, sem estações nem rugas. Todas trazem o nome escondido de muitos anos de vida.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.