Os vencidos do catolicismo

Uma breve reflexão sobre o momento eclesial e os perigos e oportunidades espirituais.

Ter fé é, seguramente, o maior dom da minha vida. E pertencer à Igreja é outra graça maior que acompanha essa primeira. Sendo apenas um pobre pecador e, por feitio, arreigadamente faltado de humildade, descubro na fé e na Igreja esse lugar onde conta sempre muito mais o que Deus faz, está a fazer com as nossas vidas, que méritos e virtudes, conquistas e sucessos, próprios ou alheios, ainda tudo isso seja muito bom (e, finalmente e sempre, graça!). Sou, por isso, não um otimista por defeito, mas um providencialista por convicção: acredito que somos capazes do melhor e, cronicamente, uns sacanas, mas que Deus é maior que as nossas vitórias e que os nossos pecados (os mesquinhos e os horríveis) e afadiga-se a garantir que nem o mal terá a última palavra, nem o bem que realizamos cairá esquecido nas dobras da História.

É sobre este pano-de-fundo que tenho voltado, uma e outra vez, a olhar para o momento que nos é dado viver como Igreja, como católicos. É inevitável um certo sentimento de derrota, se me permitem o termo. Alguns saudarão o fim da “cristandade” e do seu gregarismo pouco criterioso, mas o envelhecimento das comunidades cristãs na Europa e no Ocidente em geral inspira mais dúvidas que gritos de vitória. É possível também deixar-se encantar por um certo misticismo do vazio eclesial deixado pela pandemia, mas o não-regresso de tantos aos bancos da igreja é um ponto de interrogação no fim de cada uma das bonitas frases dos nossos planos e programas pastorais. Finalmente, o flagelo da pedofilia na Igreja, pecados e crimes sobre os quais ainda nos falta infelizmente saber tanto, paira como uma sombra sobre as palavras e os gestos de todos, do Papa ao mais humilde dos pastores, inspirando desconfiança e medo onde antes havia abertura e espontaneidade.

Dir-me-ão, e corretamente, que o diagnóstico peca por regional e incompleto. Sim, a fé cristã perdeu terreno na Europa e no Ocidente, mas floresce em África e na Ásia e, mesmo no nosso velho continente, nem tudo são cinzas: há sinais de rejuvenescimento aqui e ali, e paróquias vivas e bem de saúde. Além disso, a Igreja não ficou paralisada diante do próprio pecado, mas tem procurado enfrentá-lo, ainda que nem sempre com sucesso, e não desistiu da sua missão no mundo: basta pensar na feliz “efervescência sinodal” dos últimos anos e reconhecer tantas iniciativas, locais e universais, que dão rosto e forma ao evangelho e prometem tanto.

Na Igreja, as crises e os desertos só serão oportunidade, se nos surpreendermos, juntos, com os olhos e os braços voltados ao alto, em súplica.

Tudo isto é verdade (graças a Deus!), mas confesso que me sinto resistir cada vez mais a uma certa forma de “para-a-frentismo” espiritual, que trata erros e pecados, as perdas e os sinais de crise, com a leveza ou a arrogância de quem está “depois de tudo”. Neste ponto, o espetro eclesial está singularmente bem representado. Para uns, otimistas por carolice e sorridentes por missão, “amanhã o dia é melhor” e não há por que desistir desta infantil certeza, mesmo que isso signifique não dar ao presente o seu justo peso nem ao mal a sua merecida seriedade. Há algo de “hippie” nesta atitude e, se cabe desculpar a inocência, é justo censurar a cegueira inebriante dos “amanhãs floridos”. Em alternativa, é possível viver na certeza de que o mundo e a Igreja (!) irão sempre de mal a pior, mas que cá estaremos nós para “apanhar os cacos” e repetir, com um sorriso sardónico, “eu bem avisei”. Nalguns meios eclesiais, esta mentalidade quási-milenarista tornou-se uma espécie de segredo mal guardado, que alimenta uma afoita complacência pelos esforços de diálogo com o mundo e de reforma da Igreja e até se regozija nas crises e nas perdas, porque o amanhã será “nosso”, basta aguardar.

Creio, humildemente, que é bom experimentar, no presente, uma certa sensação de derrota. Não é fraqueza, nem falta de fé, sentir-se vencido pelas circunstâncias e pelo pecado, próprio e da Igreja, sem ainda assim ceder ao desespero. Peço emprestada a Ruy Belo e a João Bénard da Costa a expressão “vencidos do catolicismo”. Não a uso, contudo, para justificar a desilusão com a Igreja ou olhar com nostalgia para o que podia ter sido; uso-a para dizer a sabedoria de se descobrir fragilizado, ferido mesmo, pelo resultado do que não conseguimos fazer, do que fizemos mal e dos pecados e crimes que, como Igreja, cometemos, por ação e omissão, ontem e hoje; uso-a para descrever esse aperto do coração diante da indiferença de tantos à beleza do evangelho e ao rosto desfigurado mas escolhido e amado da Igreja. Não se trata, contudo, de alimentar miserabilismos ou de baixar os braços, mas de se redescobrir, ainda antes de qualquer plano ou estratégia, totalmente, inteiramente, nas mãos de Deus. Na Igreja, as crises e os desertos só serão oportunidade, se nos surpreendermos, juntos, com os olhos e os braços voltados ao alto, em súplica.

No evangelho de João, depois do longuíssimo e intensíssimo discurso do pão do Céu (João 6), as multidões começam a abandonar Jesus e instala-se uma crise no seio da comunidade dos discípulos. Jesus faz a pergunta inevitável: “Também vos quereis ir embora?”. E a resposta de Pedro é uma eloquente interrogação: “A quem iremos nós? Tu tens palavras de vida eterna”. Não há aqui nem a irritante fanfarronice do otimista (‘Esquece isso, amanhã já voltam!’), nem a satisfeita presunção do justo (‘Não me surpreende, isto não é para todos!’). Pedro responde com um grito de ajuda, que é também um “creio”. Indica-nos, vencido, o estreito sendeiro da esperança: a virtude dos fracos e pecadores diante do absurdo e do mal, o gemido do Espírito nos corações inquietos ‘Vem, Senhor Jesus!’. Bom Advento!

Fotografia: João Ferrand

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.