Na Bíblia, deparamo-nos com o relato segundo o qual Adão e Eva, depois de terem desobedecido a Deus, sentiram vergonha por estarem nus no Paraíso (Gn 3, 8). Podemos compreender de que vergonha se trata, porque é fácil, para cada um de nós, senti-la em relação ao nosso próprio corpo. Por isso mesmo, normalmente é ofensivo retratar alguém despido das suas vestes. E, se assim o é para quem quer que seja, a injúria agrava-se quando o retratado corresponde a uma pessoa que exerce uma função sagrada: como um Papa, por exemplo. Pode ser chocante, sem qualquer dúvida, e sobretudo para nós católicos, ver um Papa como Bento XVI despido dos paramentos próprios da sua dignidade.
Dito isto, gostaria de deixar aqui uma breve reflexão a propósito da escultura de Bento XVI, recentemente apresentada pelo artista italiano Jacopo Cardillo, e da polémica que tal obra tem suscitado.
Jago – o nome artístico pelo qual ele é mais conhecido – apresentou recentemente um busto de Bento XVI completamente fora do habitual. A particularidade da obra não se reduz ao facto de se ver o tronco nu do Papa emérito. Além disso, a escultura de Jago dá-nos a ver, com grande realismo, o corpo de um homem de idade avançada, cuja pele rugosa manifesta a fragilidade própria de alguém que já viveu muitos anos. Assim, não se trata apenas de ver o tronco nu do Papa, mas de ver o Papa como alguém excessivamente magro, fraco, frágil…, pelo menos segundo os padrões comuns relativos ao corpo perfeito.
Desde que foi apresentada, a obra de Jago tem suscitado controvérsia. Enquanto se tecem elogios ao talento técnico revelado pelas suas produções artísticas e à originalidade do seu estilo, há também quem considere de mau gosto e até mesmo de enorme desrespeito ousar profanar a imagem de um Soberano Pontífice.
Para que se faça justiça ao artista, parece-me ser importante compreender as suas motivações. Devemos, por isso, prestar atenção à defesa de Jago perante as críticas. O escultor italiano sublinha, nesse contexto, que nunca procurou ridicularizar o Papa emérito, por quem nutre uma enorme admiração. Jago procurou, pelo contrário, louvar a figura de Bento XVI, “o maior teólogo vivo”, segundo as suas palavras.
A escultura, produzida em 2016, teve como inspiração a célebre renúncia do atual Papa emérito. Nessa altura, Jago estava quase a terminar uma escultura, que lhe havia sido encomendada, relativa ao então Sumo Pontífice, devidamente equipado com as habituais vestes papais. O escultor decidiu modificá-la no dia em que o Papa alemão declarou, diante de todo o mundo, estar sem forças para persistir no exercício da sua função.
Aos olhos do artista, Bento XVI revelou assim a sua humanidade: ao assumir a sua fragilidade, ao abdicar do seu cargo, o Papa tornou-se, segundo as palavras de Jago, “ainda mais humano”. Foi por isso que o busto foi modificado, de forma a podermos ver essa fragilidade – ou essa “humanidade”, nas palavras de Jago – patente no corpo de Bento XVI. E é assim que o vemos, de mãos unidas como quem vive um momento de oração.
Enquanto cristão, creio que pode ser interessante confrontar a sensibilidade de Jago, assim como as críticas que lhe são feitas, com um dos dogmas principais do cristianismo: a Incarnação. Segundo a revelação cristã, na pessoa de Jesus Cristo, realiza-se a mais plena das uniões entre Deus e a natureza humana. Jesus Cristo não é Deus disfarçado de homem: é o próprio Deus que se torna (também) humano. A Incarnação de Deus significa isso mesmo: que Deus assume totalmente a natureza humana. Tal como professa o dogma: “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”.
É difícil aceitar que Deus se faça homem, no meio de nós. Foi – e continua a ser – escandaloso, ou até mesmo absurdo, acreditar nesse Deus que sofreu e que morreu na cruz. Como diz São Paulo, “nós pregamos Cristo crucificado, escândalo para os judeus, loucura para os gentios” (1 Co 1, 23). “Escândalo” ou “loucura” porque pode ser difícil olhar para Jesus e nele ver o próprio Deus em pessoa.
Se Pilatos, ao dizer Ecce homo (Jo 19, 5), apresentou o Homem-Jesus despido, ultrajado, ferido, frágil, … um homem que, aos olhos da fé, se apresenta como Deus, Jago também nos mostra o Papa Bento XVI na sua verdade: um Bento XVI que, apesar da humanidade revelada, nada perde da sua grandeza. Antes pelo contrário: para Jago, a grandeza manifesta-se no ato corajoso da renúncia, onde se assume a fragilidade.
O título por Jago escolhido para a sua exposição, Habemus hominem, pode ser interpretado dessa forma, sobretudo se tivermos em conta o fato de fazer explicitamente alusão à célebre expressão proclamada na recepção de cada novo pontífice: Habemus papam.
A exposição procura ser “uma celebração do corpo” humano, diz-nos Jago. Nesse contexto, parece-me curioso o facto de se criticar esta eventual profanação de Bento XVI, num ambiente cultural de excessivo culto por um corpo perfeito e idealizado. Realmente, numa sociedade onde se tende a disfarçar, o mais possível, o envelhecimento do corpo, escondendo-o quer nas imagens que revelamos de nós próprios, quer na forma como nos apresentamos no espaço público, este busto de Bento XVI provoca e age como uma contra-cultura. Talvez, contrariamente ao Deus cristão que assume completamente a nossa natureza humana, parece que por vezes queremos rejeitá-la.
Ainda antes da sua renúncia, Bento XVI, dirigindo-se aos artistas, afirmou que o mundo precisa de uma beleza que não seja “ilusória”, que não ignore a realidade do sofrimento e que seja capaz de nos “perturbar” (cf. Discurso de Bento XVI por ocasião do encontro com os artistas na capela sistina, 21 de novembro de 2009). No fundo, trata-se de uma beleza incarnada, uma beleza que, em vez de esconder, revela a verdade do homem. Creio ser essa a beleza que pressentimos na obra de Jago. Ver o corpo frágil de Bento XVI, aliado à serenidade do seu olhar, ajuda-nos a assumir a nossa natureza humana, na sua beleza, na sua fragilidade. Pressentir essa beleza faz-nos acreditar na dignidade da pessoa humana, assumindo-a tal como ela é. Pressentir essa beleza enche-nos de esperança em relação à vida e ao futuro, de forma a não querermos mais fugir à verdade do nosso corpo. Obrigado Jago!
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https://jago.art/opere/habemus-hominem/
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.