Um pontificado marcadamente mariano

Será interessante recordar alguns momentos altos, e até surpreendentes, deste pontificado que evidenciaram na espiritualidade cristã uma vertente vincadamente mariana.

Ao longo do seu pontificado o Papa Francisco tem destacado, de um modo cada vez mais explícito, o papel e a importância de Maria no plano salvífico de Deus para a humanidade. Apesar de nem sempre ter havido uma abordagem sistemática, a consideração da importância de Maria na vida da Igreja tem estado sempre implicitamente presente. A perspectiva mariana da vida da Igreja, se estivermos atentos, foi sendo vincadamente expressa não só em gestos e devoções, singulares e comunitários, mas tem merecido em todas as ocasiões, sobretudo nos últimos tempos, uma atenção particular da parte da hierarquia da Igreja, nomeadamente do Dicastério para a Doutrina da Fé.

Ao longo da história da Igreja tende a considerar-se que, sobretudo, e previamente ao Concílio Ecuménico Vaticano II (1962-1965), a Igreja Católica terá sido marcadamente clerical e “machista” o que conduziu a um profundo desequilíbrio. Terá sido este desequilíbrio compensado com uma devoção exageradamente mariana? Essa distorção poderia ser, ainda hoje, atual! No entanto, São Paulo VI terá tido, também, o mérito de percepcionar na Igreja e nos sinais dos tempos a real devoção mariana e a importância do papel de Maria na vida da Igreja. Assim, a Constituição Dogmática sobre a Igreja (Lumen Gentium) tem como coroamento um último capítulo intitulado: “A Bem-aventurada Virgem Maria Mãe de Deus, no mistério de Cristo e da Igreja”.

A Igreja não pode ser vista como uma realidade “fora do mundo”. O nosso mundo e a sociedade atual, sobretudo no ocidente, estão cada vez mais despertos para a expressão livre e democrática dos desequilíbrios, clivagens e desigualdades. Qualquer tipo de discriminação (religiosa, racial, sexual, etc.) geram dinâmicas de pessoas e grupos sociais que, naturalmente, não podem deixar de expressar a sua sensibilidade relativamente aos direitos humanos e cívicos. Esta consciencialização e liberdade de expressão, têm conduzido a profundas mudanças na sociedade que se vão refletindo no rosto da Igreja.

Bernard Lonergan, SJ (1904-1984) inicia a sua obra magistral Método em Teologia precisamente com a seguinte afirmação: “A teologia opera a mediação entre uma matriz cultural e o significado e a tarefa da religião nessa matriz”. Este papel mediador da teologia não pode deixar de ser considerado no contexto eclesiológico ecuménico, como é o da realidade da Igreja neste primeiro quarto do século XXI. No sentido de encontrar um equilíbrio e diálogo entre as diversas sensibilidades, desde comunidades eclesiais protestantes às diferentes igrejas ortodoxas, é necessário uma grande prudência. Não esquecendo, naturalmente, que também no seio da Igreja católica coexistem essas diferentes sensibilidades. O Papa é, no entanto, o representante da Igreja Universal.

Será interessante recordar alguns momentos altos, e até surpreendentes, deste pontificado que evidenciaram na espiritualidade cristã uma vertente vincadamente mariana. Não nos queremos referir apenas à devoção pessoal do Papa Francisco à Nossa Senhora Desatadora de Nós, que Jorge Bergoglio conheceu na Alemanha em 1986 quando preparava um doutoramento sobre Romano Guardini, e que depois divulgou na Argentina[1] , mas queremos referir-nos sobretudo a factos e documentos mais universais, tais como:

1. A Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, de 2013, considerada a carta magna do pontificado do Papa Francisco, termina com uma secção dedicada a “Maria, a Mãe da Evangelização”.[2]

2. A Carta Encíclica Laudato Si’, de 2015, que conclui com uma invocação trinitária precedida de um último ponto dedicado à “Rainha de toda a criação”.[3]

3. Na homilia, em Fátima, a 13 de maio de 2017, o Papa afirmou: “Queridos peregrinos, temos Mãe, temos Mãe!”[4] O tom efusivo e caloroso com que o Papa disse estas palavras e o modo como a assembleia as acolheu foi muito significativo. Na sequência desta visita do Papa a Fátima, também é significativa a nomeação cardinalícia de D. António Marto, Bispo de Leiria-Fátima.

4. No momento extraordinário de oração em tempo de pandemia, presidido pelo Papa Francisco, na praça totalmente vazia da Basílica de S. Pedro, a 27 de março de 2020, diante do crucifixo milagroso da Igreja de S. Marcelo e do ícone Maria Salus Populi Romani (Salvação do Povo Romano).

5. A Consagração da Rússia e da Ucrânia ao Imaculado Coração de Maria em 25 de março de 2022.

6. Em continuidade com os últimos Papas, por diversas vezes o Papa Francisco distinguiu na Igreja um “princípio pietrino” e um “princípio mariano”, teoria formulada por Hans Urs von Balthasar (1905-1988). Sensível ao lugar ocupado pela mulher na sociedade e na Igreja, o Papa Francisco tem dado maior visibilidade às mulheres na Igreja, nomeadamente integrando-as em diferentes dicastérios, assim como noutros lugares de relevo nas diversas instâncias do Vaticano.[5]

7. O Dicastério para a Doutrina da Fé atualizou, a 17 de maio de 2024, as “Normas para proceder ao discernimento de presumidos fenómenos sobrenaturais”. Estas novas normas têm dado impulso à regularização da situação de vários santuários marianos.[6]

8. A 6 de outubro de 2024, véspera do primeiro aniversário do rebentar do conflito na Terra Santa, oração do Rosário diante do ícone de Maria Salus Populi Romani, antecipando um dia de oração e penitência pela paz.

A mundividência mariológica do Papa Francisco tem-se evidenciado em muitos outros aspetos do seu pontificado. Podemos ainda lembrar alguns gestos e decisões que tornam clara esta vertente mariológica: desde o primeiro dia da sua eleição, o Papa tem-se confiado insistentemente à oração de todos os fiéis; a própria convocação do Sínodo sobre a Sinodalidade; o ciclo de catequeses recém-iniciado, a 29 de maio de 2024, intitulado “O Espírito Santo e a Esposa”; as sucessivas visitas internacionais do Papa precedidas de uma oração na Basílica de Santa Maria Maggiore, implorando proteção diante do ícone Maria Salus Populi Romani e, no regresso, o respetivo agradecimento diante da mesma imagem.

Não podemos deixar de referir a importância de Maria para Santo Inácio de Loiola lembrando que o Papa Francisco é, também ele, jesuíta. Os Exercícios Espirituais têm na base a tradição espiritual cristã, nomeadamente até ao séc. XV, assim como a experiência pessoal orante de Inácio. O relato autobiográfico permite-nos perceber melhor a devoção e a ternura que Inácio tem por Nossa Senhora bem como o lugar singular que ela ocupa na espiritualidade inaciana.[7] Nos Exercícios Espirituais (EE), Inácio de Loiola não nos apresenta qualquer abordagem teológica sistemática sobre Maria. Contudo, a um exercitante atento salta à vista o destaque que é dado a Nossa Senhora na experiência completa com a duração de trinta dias:

1. O primeiro e o último mistério de Jesus desenvolvidos por Inácio são respetivamente a “contemplação da Encarnação” (EE 101-109), com a Anunciação ao centro, e a contemplação de “como Cristo Nosso Senhor apareceu a Nossa Senhora” (EE 218-225), que curiosamente não vem narrada nas Escrituras;

2. As graças de viragem nos EE constam de um tríplice colóquio sendo o primeiro dirigido a Nossa Senhora (EE 63 e 147);

3. A quarta semana dos EE conclui com os “modos de orar” (EE 249-260) em que é proposto que se interiorize as primeiras orações memorizadas, entre elas a “Avé-Maria” e o “Salvé Rainha”, saboreadas palavra a palavra detidamente ou, então, ao ritmo da respiração;

4. A secção final dos EE intitula-se “Para o verdadeiro sentido que na Igreja militante devemos manter, guardem-se as regras seguintes” (EE 352-370), na qual a presença mariana também se faz sentir.

A proximidade espiritual do Papa Francisco com os Exercícios Espirituais e a centralidade de Nossa Senhora, terão certamente constituído um fundamento inspirador que tem marcado, de um modo significativo, este pontificado.

 

Referências:

[1] Miguel Cuartero Samperi, Nossa Senhora desatadora de nós, História de uma devoção mariana, Paulus, Lisboa, 2014.

[2] Cf. Evangelii Gaudium [284-288]

[3] Cf. Laudato Si’ [241-242]

[4] “Peregrinação do Papa Francisco ao Santuário de Nossa Senhora de Fátima por ocasião do centenário das aparições da Bem-aventurada Virgem Maria na Cova da Iria (12-13 de maio de 2017). Santa Missa com o rito da canonização dos Beatos Francisco Marto e Jacinta Marto. Homilia do Santo Padre. Adro do Santuário de Fátima, sábado 13 de maio de 2017” (www.vatican.va).

[5] Veja-se a este respeito: [1] Discurso do Papa Francisco no “Congresso mulheres na Igreja, artífices do humano”, a 7 de março de 2024; [2] Prefácio do Papa Francisco de 8 de dezembro de 2023 ao livro: Linda Pocher, Luca Castiglioni, Lucia Vantini, Desmasculinizar a Igreja? Análise crítica dos princípios de Hans Urs von Balthasar, Paulinas, 2024 (a 5 de fevereiro de 2024 estes três teólogos foram chamados a participar do Conselho de Cardeais, reunido para uma reflexão acerca do papel da mulher na Igreja); [3] a entrevista ao Papa no regresso da visita ao Luxemburgo e à Bélgica (Vatican News, “Pope on bombardement of Lebanon”, 29.09.2024).

[6] Nomeadamente nos santuários de Our Lady of Mystical Rose, Our Lady of the Rock, Our Lady of Medjugorje, Our Lady of Mercy at Shrine Pellevoisin (cf. Vatican News English 8.07.2024, 16.07.2024, 17.05.2024 e 28.08.2024, 30.08.2024).

[7] Cf. Santo Inácio de Loiola, Autobiografia, Apostolado da Oração, Braga, 2019, veja-se por exemplo, nº 6, 11, 17.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.