Da mesma forma que não há receitas para a felicidade (a não ser talvez Mt 16,24-25), também não há receitas para o Verão. Mas há esta ótima tradição de oferecer conselhos de leitura, cultura e lazer e é essa a singela pretensão deste artigo. Proponho um livro, uma série e um concerto.
Um livro
O livro que proponho não é bem um “livro de Verão”. Se entendo bem o conceito, os ditos “livros de Verão” têm de ser ou obras literárias menores ou de tão fácil leitura e tão despretensioso tema que o leitor se sente um génio de igual ou superior gabarito ao do autor. A obra que proponho, do americano George Saunders, não cumpre esses requisitos. É mais um anti-livro de Verão, se tal coisa existe.
Lincoln no Bardo (título original: “Lincoln in the Bardo”) foi publicado em 2017 e venceu o Man Booker Prize. Foi o primeiro romance publicado por George Saunders, que é conhecido sobretudo pelos seus contos e ensaios (o filme Netflix “A Cabeça da Aranha” – a evitar! – é baseado num conto de Saunders). Inspirado em factos reais, o livro transporta-nos a 1862 e ao seio da família do presidente americano Abraham Lincoln. Neste que é o segundo ano da guerra civil americana, abate-se sobre a família uma tragédia brutal: o pequeno Willie (William Wallace Lincoln) sucumbe às mãos da febre tifoide. Lincoln, assim nos dizem os relatos contemporâneos, desloca-se várias noites seguidas ao jazigo a dar colo ao corpo morto do filho. O romance escolhe uma dessas noites para acompanhar Lincoln ao cemitério e nos introduzir ao duplo drama do pai e do filho. Porque, e esta é a premissa que dá título ao livro, aos mortos que se encontram numa espécie de espaço liminar entre a vida e a outra “vida” (Saunders usa o termo “bardo”, que na tradição budista tibetana designa uma espécie de “estado intermédio” entre a morte e a reincarnação, mas acaba por preencher este bardo com elementos de inspiração cristã e de outras tradições religiosas) também cabe a difícil decisão de se separar da vida e dos vivos.
Saunders é sensível como ninguém às subtis e menos subtis pulsões da perda e do luto e escreve com delicadeza e sabedoria sobre o abismo da dor, a violência da separação e a comovente absurdidade dos gestos de despedida. Mas fá-lo sem sacrificar o génio narrativo. Lincoln no Bardo não é um sermão disfarçado de romance. O drama dos Lincoln é-nos narrado por um coro de vozes – deste mundo e do bardo – num exercício polifónico que dá ritmo, profundidade e horizonte ao relato. O experiencialismo narrativo de Saunders é, por isso, (muito!) mais que simples malabarismo estilístico: é a cacofonia ou o caleidoscópio que convoca o indizível da morte, que é, finalmente, o indizível da vida.
Uma série
Se Lincoln no Bardo é um dos melhores livros que alguma vez li, Ozark é, seguramente, a melhor série a que assisti no último ano. A série tem quatro épocas, a última das quais foi lançada este ano. Criada por Bill Dubuque e Mark Williams, Ozark segue as peripécias de um casal, Wendy e Marty Byrde, que foram “forçados” a sair de Chicago e a mudar-se para a zona do lago dos Ozarks (na região do Missouri, perto de Saint Louis), com os dois filhos (Charlotte e Jonah), numa tentativa desesperada de “salvar a pele” depois do sócio de Marty ter sido apanhado a enganar um barão da droga mexicano. Marty e o sócio eram responsáveis pela operação de branqueamento de capital do cartel e o sócio decidiu defraudar os patrões, tendo sido apanhado e cruelmente castigado. Em desespero, Marty promete expandir a operação de branqueamento de capital transferindo-a para uma região, os Ozarks, sobre a qual pouco ou nada sabe. A série acompanha as peripécias dos Byrde, que tentam cumprir o prometido enquanto navegam as turbulentas águas locais (outros traficantes de droga, máfias locais, políticos corruptos e sem escrúpulos, etc.).
Se a premissa e o tema não são particularmente originais, o argumento e as interpretações, sobretudo de Jason Bateman (Marty Byrde) e Laura Linney (Wendy Byrde), transformam Ozark numa obra-prima do género. A série capta na perfeição aquela reação tão humana de tentar salvar más decisões com decisões péssimas e de racionalizar tanto os motivos inquinados como as mentiras que se dizem para os justificar. Ozark é um retrato complexo e inteligente das dinâmicas familiares e sociais dos Byrde e, por isso, um policial que alia o suspense à profundidade, sem sacrificar nem o ritmo próprio do género nem a qualidade dos diálogos ou o relevo das personagens.
Um concerto
Finalmente, um concerto. Aqui, contudo, mais do que uma sugestão, fica um apelo. Na verdade, uma espécie de confissão. Por uma daquelas boas coincidências que às vezes nos sucedem, vi-me a assistir a um excelente concerto ao ar livre de música clássica. O prato principal era a sinfonia “Eroica” (n.º 3) de Beethoven e a orquestra e o maestro portaram-se mesmo muito bem. Ali sentado, naquele fim de dia, pude recordar o quanto me fazia falta ouvir boa música ao vivo e deixar que a beleza me encante e expanda os sentidos. Não ia a um concerto há mais de dois anos e já quase esquecera a sensação de ser transportado a esse outro lugar onde a alma está suspensa, com outros, do carrocel de moções e emoções que só a música tem capacidade de inspirar.
Não sei se o leitor aprecia, como eu, música clássica. Talvez prefira outros géneros e outros contextos. Mas, é tão simplesmente a esta despretensiosa terapia da arte que o convido este Verão.
Boas leituras, bons visionamentos, bons sons e, se for o caso, boas férias!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.