Este é o primeiro artigo de um conjunto que nos convida a aprofundar a espiritualidade do Coração de Jesus, por ocasião da sua festa litúrgica (27 de junho) e dos 350 anos das aparições a Santa Margarida Maria Alacoque, que celebraremos em julho. Vivemos num tempo em que muitos procuram um bem-estar holístico (wellness), mas onde, paradoxalmente, uma caricatura da razão — reduzida à técnica e à lógica transacional — se tornou a principal linguagem de comunicação entre os povos.
Por isso, precisamos de redescobrir formas novas e corajosas de voltar a unir, na fé e na vida, o afeto com a ação, a vida interior com o compromisso no mundo — não como uma fé centrada em nós mesmos, nem como um ativismo sem rumo, mas como uma forma de viver verdadeira, profundamente ligada a Deus, aos outros e à criação.
A espiritualidade do Coração de Jesus é, neste sentido, um tesouro precioso para a Igreja de todos os tempos, ao qual podemos sempre regressar, como quem abre um baú cheio de coisas antigas e novas que continuam a iluminar o presente.
Um meteorito na espiritualidade da Igreja?
A devoção ao Coração de Jesus não ressurgiu no século XVII como um meteorito caído do nada. Ao longo de séculos, o povo de Deus foi sendo nutrido por expressões bíblicas que o conduziam a uma espiritualidade do coração. O profeta Jeremias anunciava: “A nova aliança que então farei com o povo de Israel será esta: vou gravar a minha lei no seu interior, vou escrevê-la nos seus corações. Serei o seu Deus e eles serão o meu povo” (Jer 31, 33). Esta promessa, repetida por muitos profetas, revela o desejo de Deus: que os seus mandamentos não se reduzam a um formalismo externo, mas toquem o mais íntimo do coração humano.
Jesus viveu e realizou esta promessa, nos seus gestos, palavras e sentimentos. Daí que o Papa Francisco, na sua última Encíclica, tenha afirmado: “As palavras que Jesus pronunciou indicavam que a sua santidade não elimina os sentimentos. Por vezes, mostravam um amor apaixonado, que sofre por nós, se comove, se lamenta e chega, até mesmo, às lágrimas. É evidente que Ele não era indiferente às preocupações e angústias comuns das pessoas, como o cansaço ou a fome: «Tenho compaixão desta multidão […] Não têm nada para comer […] desfalecerão no caminho, e alguns vieram de longe» (Mc 8, 2-3).” (Cf. Dilexit nos, 44) No amor ao Pai e aos irmãos, o Seu Coração manifesta sentimentos profundos, dentre os quais se destacam dois: a alegria agradecida diante do Pai (amor ascendente) e a compaixão diante dos irmãos (amor descendente).
Jesus alegra-Se com os discípulos quando regressam da missão, e reza assim: “Agradeço-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra, porque revelaste aos simples as coisas que tinhas escondido aos sábios e entendidos” (Lc 10, 21). E partilha essa alegria com eles: “Falo-vos desta maneira para que se alegrem comigo e para que tenham uma alegria perfeita” (Jo 15, 11). A alegria do Coração de Jesus não é autorreferencial: nasce da confiança no Pai e expande-se numa comunhão fraterna.
Mas não há apenas alegria. A compaixão é talvez o traço mais reconhecido dos sentimentos de Jesus, tanto por crentes como não crentes. Uma compaixão que O move profundamente e O leva a oferecer-Se aos que mais sofrem. Os Evangelhos mostram-no várias vezes “movido de compaixão” ao ver as multidões abandonadas e cansadas, como ovelhas sem pastor (cf. Mt 9, 35; 14, 14). E a Carta aos Hebreus confirma: “Sabemos que o nosso sumo sacerdote se compadece das nossas fraquezas” (Heb 4, 15).
A espiritualidade cristã, ao longo dos séculos, reconheceu no Coração de Jesus o símbolo humano-divino deste amor ascendente e descendente: alegria na relação com o Pai e compaixão na relação com a humanidade. É esta mesma experiência que será central nas revelações do Coração de Jesus à irmã Margarida Maria Alacoque.
Revelações a Santa Margarida Maria Alacoque
A 27 de dezembro de 1673, na festa de São João Evangelista, Margarida Maria de Alacoque — Irmã da Visitação de Santa Maria —, em oração diante do Santíssimo Sacramento, teve uma experiência fundante de uma visitação de Deus. Ela mesma a narra com palavras que dispensam qualquer comentário:
“Estava uma vez diante do Santíssimo, achando-me com um pouco mais de vagar (que não me davam muito as ocupações de que me encarregavam), e encontrava-me toda possuída daquela divina presença, e tão fortemente, que me esqueci de mim mesma e do lugar em que estava: entreguei-me então àquele divino Espírito, pondo o meu coração à mercê da força do Seu amor. Fez-me repousar por largo tempo em seu divino peito; e ali me descobriu as maravilhas do Seu amor e os segredos insondáveis do seu Sagrado Coração, que sempre me tinha conservado escondidos até àquele momento em que mos abriu pela primeira vez, mas de modo tão real e sensível que me não deixou lugar a nenhuma dúvida, pelos efeitos que esta graça produziu em mim.”
E continua, citando as palavras que ouviu de Jesus:
“O Meu divino Coração está tão abrasado de amor para com os homens, e em particular para contigo, que, não podendo já conter em si as chamas de sua caridade, precisa de derramá-las por teu meio, e manifestar-se-lhes para os enriquecer com os seus preciosos tesouros, que Eu te mostro a ti, os quais contêm a graça santificante.” (53)
Neste breve relato, vemos condensadas a gratuidade do amor divino, o desejo de que esse amor seja conhecido e partilhado, e o coração como lugar simbólico e real onde esse amor se dá a experimentar.
Uma espiritualidade da visitação
A espiritualidade do Coração de Jesus mostra-nos que a vida cristã não nasce de uma ideia moral ou de um esforço voluntarista, mas da experiência gratuita de um amor que nos visita subitamente, sem que tenhamos feito nada por isso. Num mundo que mede a dignidade pelo que se conquista e se alcança, esta espiritualidade recorda algo radicalmente diferente: o mais profundo da nossa humanidade revela-se, não na capacidade de alcançar, mas de se deixar visitar ou alcançar.
Esta espiritualidade recorda algo radicalmente diferente: o mais profundo da nossa humanidade revela-se, não na capacidade de alcançar, mas de Se deixar visitar ou alcançar.
O ser humano é, na verdade, um ser visitado. Desde o sorriso da mãe até ao reencontro de um amigo, é na visita gratuita de um outro que reconhecemos a nossa dignidade. Daí que o teólogo belga Adolphe Gesché afirme, sabiamente, que no mais íntimo de nós não está uma autoafirmação isolada da nossa identidade individual, mas uma receptividade originária, um espaço onde o outro tem lugar e nos permite ser mais do que aquilo que conseguimos por nós próprios. Somos, por essência, seres visitados. E é nesse horizonte que os termos “revelação”, “encarnação” ou “habitação” deixam de ser ameaças à nossa individualidade e tornam-se nomes da nossa verdade mais funda. Deus não se impõe, portanto, como rival da nossa liberdade, mas visita-nos como um Tu que se faz fonte dela, oferecendo-nos um nome mais verdadeiro do que aquele que o nosso pecado ou os nossos fracassos nos impõem. Nas próprias palavras de A. Geschè (Cfr. Dieu pour penser, vol. II — L’homme):
Ao jovem traficante de drogas que visitamos na prisão, ousamos dizer: tu não és um ladrão; tu roubaste, mas isso não pertence à tua essência. Pode-se objetar: qualquer um pode dizer isso! Certamente. Mas quando nos expressamos assim em nome de Deus? Apenas quando dizemos: Não sou apenas eu quem o diz, mas é o próprio Deus quem te diz o que eu te digo, eu digo-o em Seu nome. Como Pedro, “Não tenho prata nem ouro, mas o que tenho, isso te dou. Em nome de Jesus, o nazareno, levanta-te e anda” (At 3:6). Porque é o que o Senhor pensa de ti. Mesmo nos casos extremos, não és o que pensas ser, és o que Deus acredita que tu és.
Ora, no Coração de Jesus, esse Amor divino-humano visita-nos como um Tu pessoal. Um Tu que deseja tratar-nos como um tu amado e por isso sumamente digno. Abrir, portanto, o baú desta espiritualidade é redescobrir uma síntese atitudinal da Eucaristia e, consequentemente, uma forma simples e essencial de viver a fé cristã: desde uma alegria agradecida e voltada para a visitação/compaixão.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.