Um choro que nos faz acordar

As inundações devastadoras em Moçambique vieram revelar de forma aguda a contemplação proposta pelo Papa Francisco para esta Quaresma: o choro e a impaciência da criação, aguardando a nossa participação.

Nos últimos dias chega-nos o desespero de Moçambique, Malawi e Zimbabwe com a devastação do ciclone Idai. Só em Moçambique o número de mortos supera os 400 e 350 mil pessoas estão em risco, devido aos efeitos das cheias nas bacias dos rios Buzi e Pungoe. O choro agudo de Moçambique, devastado pelas águas, faz-nos sentir o choro da Terra e da Humanidade, ao ponto de nos detonar por dentro rebentando os nossos diques, as nossas seguranças, os nossos hábitos, fazendo-nos desejar transpor este imenso oceano para estar lá, fazer alguma coisa. As inúmeras manifestações de solidariedade que chegam de todo o mundo revelam este nosso desejo.

De acordo com o Banco Mundial e as Nações Unidas, Moçambique é o terceiro país africano mais vulnerável a desastres relacionados com fenómenos meteorológicos extremos, um dos impactos das alterações climáticas. As condições no terreno, com grandes índices de pobreza e desordenamento territorial, acabam por agravar ainda mais esta realidade. Como é injusto que os que menos contribuem para a emissão de gases com efeito de estufa, sejam quem mais sofre os impactos dos desequilíbrios ambientais a eles associados! Não dispõem de qualquer seguro, qualquer segurança… As suas vidas simples, despojadas, no limiar da pobreza, vão-nos desafiando à comunhão, ao despojamento, à conversão a um outro paradigma de sociedade, a outro estilo de vida.

Como é injusto que os que menos contribuem para a emissão de gases com efeito de estufa, sejam quem mais sofre os impactos dos desequilíbrios ambientais a eles associados! Não dispõem de qualquer seguro, qualquer segurança…

Se “acordarmos por dentro”, são tantas as formas de nos comprometermos diariamente por um estilo de vida que cuide do planeta e das pessoas, em especial das mais vulneráveis. “O choro da terra é o choro dos mais pobres”. De visita a Portugal há um mês atrás, onde, entre outras iniciativas, participou no “ACORDA! – Da conversão ecológica à transformação social”, Pedro Walpole sj (jesuíta irlandês há 40 anos nas Filipinas, onde acompanha comunidades vulneráveis às inundações) apontava a necessidade de trabalhar em conjunto estes dois campos. No entanto, num tempo tão marcado por catástrofes naturais, não se cansou de insistir na confiança e no que podemos fazer de bem. Como é que este choro faz germinar em mim a humildade dos pequenos passos de mudança? Ouvir e acordar com este choro, faz-nos sentir interdependentes, implicados num destino comum. Faz-nos mais conscientes do tanto que temos, mais agradecidos pela vida, mais responsáveis com o que com ela fazemos, como a vivemos. Só a partir desta consciência, será possível mudar exteriormente e lutar por uma mudança que se concretiza em escolhas e políticas mais justas e sustentáveis.

Como é que este choro faz germinar em mim a humildade dos pequenos passos de mudança? Ouvir e acordar com este choro, faz-nos sentir interdependentes, implicados num destino comum

Temos ao longo deste ano, oportunidades políticas concretas para acordar, no contexto das eleições europeias em maio e eleições legislativas em outubro. E como é urgente não desperdiçar estas oportunidades. Depois de décadas de construção da Paz e União no pós segunda guerra mundial, atravessamos um período de grande fragmentação, presente a todos os níveis, desde nas nossas vidas pessoais, às sociedades que integramos e à geopolítica global. “O mundo contemporâneo, aparentemente interligado, experimenta uma crescente, consistente e contínua fragmentação social que põe em perigo todo o fundamento da vida social e assim acaba por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses” (Encíclica Laudato si’, 229). Como promover e testemunhar espaços de reconciliação que promovam o sentido do cuidado e da comunhão? É importante tomar consciência de que um dos efeitos das alterações climáticas na Europa, para as quais nós europeus contribuímos em larga escala com o nosso estilo de vida, são precisamente as migrações, de milhares de refugiados e deslocados climáticos.

Nos últimos dias, quase que como num diálogo profundo que ultrapassa o tempo e o espaço, assistimos a várias iniciativas que mostram como mobilizar o Bem.

É o sofrimento da maior parte que paga os luxos de alguns poucos. Precisamos de deixar os combustíveis fósseis no subsolo, e temos de pôr a tónica na equidade. (Greta Thunberg)

Greta Thunberg, jovem sueca de 16 anos, abre-nos caminho nesse sentido, ao mobilizar milhares de jovens de mais de 100 países para uma greve pelo clima a 15 de março. Ouve e reage ao choro da Terra e da Humanidade, convocando uma grande mobilização conjunta, uma paragem, um tempo e um espaço que nos permite sentir juntos este grito. Numa primeira reação, podemos achar inconsequente uma “greve pelo clima”. A verdade é que a sua impaciência gerou um pequeno passo catalisador de uma grande e ampla sede de mudança assente na esperança, refletida nas muitas campanhas de mobilização pela justiça climática que vão germinando. A calma e clareza que apresenta no discurso que fez na Cimeira do Clima em Katowice, em dezembro passado, revela a forma como se sente entranhada no sacrifício e no sofrimento da Criação: “A nossa biosfera está a ser sacrificada para dar oportunidade a um número muito pequeno de pessoas de continuarem a obter enormes somas de dinheiro. A nossa biosfera está a ser sacrificada para que pessoas ricas em países como o meu possam viver no luxo. É o sofrimento da maior parte que paga os luxos de alguns poucos. Precisamos de deixar os combustíveis fósseis no subsolo, e temos de pôr a tónica na equidade“.

Por outro lado, entre 19 e 21 março, decorreu em Washington o encontro “Ecologia Integral: uma resposta sinodal da Amazónia e outros territórios essenciais para o cuidado de nossa casa comum”, com a presença de povos indígenas, autoridades eclesiais, organizações internacionais dos cinco continentes. Este foi um encontro preparatório do sínodo “Amazónia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral” que o Papa Francisco iniciou na Amazónia peruana em janeiro de 2018 e que culminará em Roma em outubro.

Como me posso unir a estas mesas, acordos, manifestações? Como é que este choro me acorda? Que a minha impaciência por agir se junte à impaciência da criação, na expetativa ansiosa de que entremos decididamente neste “parto” que é a conversão (mensagem do Papa Francisco para a Quaresma 2019).ç

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.