Quando a palavra e a vida se juntam, nem que se seja por um brevíssimo instante, o coração pasma. E não é para menos, claro. Não é todos os dias que tão delicado fenómeno se produz. Atores e poetas, dramaturgos e locutores de futebol trabalham a vida inteira a ver se chegam perto de tal maravilha. Mas, há uns meses, um deputado do Partido dos Animais e da Natureza conseguiu essa proeza sem esforço aparente. Algum tempo antes, o referido partido apoiara uma iniciativa para mudar os provérbios que referissem animais. No que parecia indicar a primazia de uma facção interna em relação à outra, sugeriam, por exemplo, que passássemos a dizer “pegar a flor pelos espinhos” em vez de “pegar o touro pelos cornos”. Ora, nesse irrepetível dia de dezembro, ao interrogar outro representante do povo numa comissão do Parlamento, André Silva, deputado do Partido dos Animais e da Natureza, disse nem mais nem menos do que: “Pela boca, morre o peixe”. Raramente, um provérbio terá sido tão igual a si próprio. Quantos atores não terão chorado, comovidos, perante essa façanha no palco da comissão do ambiente. Um deputado do Partido dos Animais e da Natureza fazendo das palavras ato, juntando frase e facto de uma penada, e com um à-vontade, um jeitinho, um brilho únicos.
Esta história de querer mudar os provérbios com animais é só um exemplo do politicamente correto dominante. Um exemplo, digamos, curioso neste nosso país à beira-mar plantado. Mas o fenómeno é global. Ainda no outro dia, do outro lado do Atlântico, David Leonhardt, respeitado cronista do New York Times, metia os pés pelas mãos a penitenciar-se por ter citado mais homens do que mulheres nos textos passados e prometendo “compensar” isso daí em diante…
Se juntarmos a este ambiente de “policiamento da linguagem”, para usar uma expressão de Mia Couto, a degradação acelerada do nosso discurso à conta de ecrãs, redes sociais, telefones espertos e uma ânsia geral de “comunicação” que não parece deixar espaço para uma simples conversa, o mínimo que podemos dizer é que o horizonte não é famoso.
Claro que as palavras são importantes. Claro que as palavras podem ser transformadoras. Podem servir para mudar a forma como vemos as coisas e inspirar-nos a mudar o mundo. Mas embrulhá-las no celofane do politicamente correto, torná-las asséticas com medo que venham a ofender estes ou aqueles, é retirar-lhes toda a chama, todo o perigo — amputá-las, precisamente, dessa sua capacidade de rescrever o futuro.
Se juntarmos a este ambiente de “policiamento da linguagem”, para usar uma expressão de Mia Couto, a degradação acelerada do nosso discurso à conta de ecrãs, redes sociais, telefones espertos e uma ânsia geral de “comunicação” que não parece deixar espaço para uma simples conversa, o mínimo que podemos dizer é que o horizonte não é famoso. Não, não é só uma questão para escritores, jornalistas, professores, poetas. A palavra não é só um conjunto de letras. É a forma como vemos o mundo, como lhe descobrimos sentidos e como tentamos reinventá-lo. Ou de outra maneira, citando o grande Nanni Moretti no filme Palombella Rossa: “Quem fala mal, pensa mal e vive mal”.
Não há, claro, curas milagrosas para este estado de coisas. Mas permitam-me que aqui venha propor um remédio para começo de tratamento: a leitura dos contos de João de Araújo Correia. São histórias curtas e exatas, de uma limpidez, dir-se-ia, regeneradora. Retratos de pessoas de carne e osso que, de tão bem definidas, tão cuidadosamente inscritas num certo lugar e num certo tempo, se tornam emblemáticas. Uma escrita da qual se pode dizer, como que falando de uma malga de água fresca da mina, que é revigorante.
Mas, atenção, não há aqui qualquer espécie de simplismo ou transparência. Os contos de João de Araújo Correia, se têm a clareza de um dia claro no campo, não deixam de ser densos, com nós estranhos e ecos inesperados, como a impressão que pode ficar no caminhante que cruze, sozinho, o monte. Não sei maneira melhor de falar desta voz tão “clássica” que é diferente de todas. Uma voz que não parece “querer dizer”, mas tem a bravura do que apenas “é”. Uma voz, digamos, simples e definitiva como uma pedra à beira-rio ou a sopa a fumegar no fogão. Depois de ler “O Mestre de Nós Todos”, a antologia de contos e crónicas de Araújo Correia, sentimos o prazer rememorável de uma viagem. Chegámos ao destino, sim, mas o importante é o que guardámos do caminho.
Um conto é a história da Consciência: uma “grave mulher que percorria as aldeias no fim do outro século”, alguém de quem se diz que era “o demónio do bem”. Outro fala-nos de uma “Rua morta”: “Só eu ali passava, porque aquela rua, depois de certa idade, tinha empobrecido”. E há também “Os figos de pau”, sobre o Tio António Chapeleiro, que guardou um tesouro até lhe matar o propósito. E “De jornada”, um conto que “veio de pais a filhos. Conta-se à lareira, todos os invernos, em Trás-os-Montes.” E muitos, tantos outros.
Na introdução de “O Mestre de Nós Todos”, João Bigotte Chorão faz um bom apanhado da arte de Araújo Correia: “Escritor clássico pela arte da sugestão que não precisa de dizer tudo para que se percebam as entrelinhas”, escreve. E, mais à frente: “A lição de João de Araújo Correia resume-se toda nisto: aproximar o mais possível a linguagem escrita da linguagem falada, para a tornar mais natural, num caminho de simplicidade que evite todo o pedantismo e toda a arbitrariedade.” Para limparmos a alma do ruído, da palha e de certa idiotice amplificada que anda por aí, estas páginas são um belo começo. Sobre Araújo Correia, poder-se-ia dizer, como no conto “O escritor” que abre a antologia: “Nascera para escrever como outros nascem para pescar trutas ou caçar borboletas.”
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.