“Treze razões” para confirmar um juiz

Voltamos hoje ao tema da eleição do juiz Brett Kavanaugh. Miguel da Câmara Machado responde a Carla Quevedo expondo 13 razões pelas quais julga que votar para confirmar aquele juiz para o Supremo Tribunal americano foi uma decisão sensata.

O texto “Retórica avançada” de Carla Quevedo, deixou-me com vontade de responder a uma pergunta, e, mais do que isso, de apresentar 13 razões pelas quais acredito que o juiz Brett Kavanaugh foi bem confirmado para o Supremo Tribunal dos Estados Unidos de América (Supreme Court of the United States  (SCOTUS).

Aquele texto colocava-nos, entre outras, uma questão central: “Por que carga de água há-de uma pessoa sujeitar-se a humilhações e ameaças de morte se não estiver a dizer a verdade?”.

Para perceber esse “porquê”, importa recordar que esta foi uma das mais importantes votações para decidir o futuro do SCOTUS de sempre. Estamos a falar de um dos tribunais mais relevantes do mundo, com força e poder para determinar e encaminhar o Direito num país que é uma potência indiscutível e com uma jurisprudência que é seguida e inspiradora de juristas de todos os quadrantes.

Aquele texto colocava-nos, entre outras, uma questão central: “Por que carga de água há-de uma pessoa sujeitar-se a humilhações e ameaças de morte se não estiver a dizer a verdade?”.

Anthony Kennedy, o juiz que renunciou em julho, era o “último moderado” num tribunal que passou a ter quatro “sólidos liberais” (nomeados pelos Presidentes Clinton e Obama) e quatro “sólidos conservadores” (nomeados pelos Presidentes Bush, pai e filho, e já um pelo Presidente Trump).

Assim, nas “questões fracturantes”, o voto determinante foi recorrentemente, nas últimas décadas, do juiz Kennedy (nomeado pelo Presidente Reagan depois de o seu primeiro nomeado, Robert Bork, ter sido chumbado no Senado – caso único nos últimos 50 anos). Apesar do seu percurso mais “conservador”, aquele juiz foi determinante para manter o “direito ao aborto” como decorrência de um direito constitucional à privacidade (1992), para proibir a aplicação da pena de morte a menores (2005) ou para estabelecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo a nível nacional (2015). Era o “swing vote” e repetidamente considerado um dos mais poderosos nos EUA. Com a esperança média de vida atual e sendo as nomeações para este tribunal vitalícias, em 2018, com o novo nomeado, o “jogo de forças” no SCOTUS vai mudar completamente para as próximas décadas. Logo em julho prometia-se luta feia em Washington, com o líder dos democrata a garantir combater a nomeação “com todas as suas forças” e isso concretizou-se em grande em setembro.

Com a esperança média de vida atual e sendo as nomeações para este tribunal vitalícias, em 2018, com o novo nomeado, o “jogo de forças” no SCOTUS vai mudar completamente para as próximas décadas.

Uma enorme “carga de água”

Havia uma enorme “carga de água” que justificava que se fizessem ataques, que estivessem montadas campanhas “anti-nomeado”, antes mesmo de se conhecer o nome escolhido e que, em teoria, explicaria a fabricação de um escândalo sexual contra o juiz Kavanaugh, tema particularmente “quente” num ano de “#metoo”. E a acusadora, Christine Blasey Ford, não se quis “sujeitar a humilhações e ameaças”: em julho terá escrito uma carta à Senadora do seu estado, a democrata Dianne Feinstein, pedindo confidencialidade e secretismo e partilhando a sua história, sobre uma alegada tentativa de violação por Kavanaugh, há 36 anos e no seu último ano de liceu.

Esta história não foi divulgada publicamente, os dados não foram passados ao FBI para fazer o relatório sobre o “background” que construiu durante todo o verão, nem a Senadora Feinstein discutiu isso com o candidato, quando se reuniram entretanto. Não se falou disso nas audições com que setembro começou, que analisaram ao detalhe as decisões, os textos, os trabalhos e a vida de Brett Kavanaugh. Foi preciso esperar até às vésperas da votação sobre aquele juiz para alguém do gabinete da senadora “vazar” para a imprensa a história de que havia uma acusação e a Professora Ford ser forçada a revelar a sua identidade e partilhar a sua história com a América e o mundo (apesar de nesses quase 40 anos não a ter partilhado com ninguém, não havendo um amigo ou testemunha com quem tenha falado, apenas um relatório de 2012 do psicólogo a quem terá revelado um alegado abusador, sem o nome, e a afirmação do marido de que, a dado momento, mais recente, teria partilhado o nome com ele). Brett Kavanaugh já fora nomeado para o segundo mais importante tribunal dos EUA em 2003, onde trabalhava com Merrick Garland, juiz nomeado pelo Presidente Obama em 2016 que nunca foi votado pelos republicanos, tendo esse processo deixado feridas nos democratas e uma vontade de vingança que também justificaria a luta mais feroz este ano. Já em 2003 a confirmação de Kavanaugh passou por um processo feroz no Senado (de mais de um ano e meio), em que a sua vida e carreira foram escrutinadas publicamente, depois de ter sido nomeado pelo Presidente W. Bush, de quem tinha sido assessor, já depois de ter feito parte das equipas que investigaram comportamentos do Presidente Clinton que podiam ter relevância criminal. Ao longo de todo esse tempo, nada se soube quanto a esta acusação.

Foi preciso esperar até às vésperas da votação sobre aquele juiz para alguém do gabinete da senadora “vazar” para a imprensa a história de que havia uma acusação e a Professora Ford ser forçada a revelar a sua identidade.

Havia uma enorme “carga de água” que justificava que alguém se expusesse (ou fosse exposto, como aconteceu) para impedir a votação de um novo juiz, especialmente tendo em conta as eleições de 6 de novembro, para o Senado, que poderão dar uma maioria aos democratas que são hoje 49 contra 51. Não me parece difícil perceber o “porquê” ou “para quê” da acusação, usando as palavras do artigo a que respondo, “quando não há provas, passaram mais de trinta anos e o único sinal que temos é a ira do acusado” e quando estava em causa o futuro dos “direitos” nos EUA. O novo juiz ia, vai, mudar a justiça americana para sempre.

A Carla Quevedo pergunta ainda “como se deve comportar alguém que é acusado injustamente?” e agarra-se à reação furiosa, triste e com muitas tiradas infelizes, de Brett Kavanaugh como prova de que a sensatez não venceu com a confirmação do juiz. Procurando encurtar caminho, vou procurar elencar em tópicos (aludindo ao nome de uma das mais polémicas séries do momento, também sobre abusos sexuais) “treze razões” pelas quais me parece sensato ter confirmado aquele juiz.

As 13 razões

1. Estamos a falar de um dos mais brilhantes juristas da sua geração, formado em Yale (com uma especialização em História, onde estudou certamente sobre vários os founding fathers “irados” em debates acesos na Convenção de Filadélfia ou no primeiro Senado americano: é ir procurar os relatos das discussões que envolveram Hamilton, Burr, Jefferson, Adams ou Marshall, para identificar em todos esses génios algumas pistas de “desequilíbrios emocionais” – especialmente quando eram “acusados injustamente” e acabavam em duelos ferozes em que alguns deles vieram a morrer);

2. É um académico brilhante, especialista em “separação de poderes” e um professor reconhecido como excepcional pelos seus alunos e pares, foi contratado para Harvard pela juíza Kagan – liberal a que agora se junta no tribunal – sendo ainda professor em Georgetown e Yale e repetidamente convidado para ensinar em universidades e escolas do país inteiro.

3. Mas é um jurista com as “mãos na massa”: tem experiência nos vários “lados da barricada”, fez parte de equipas de procuradores e de advogados (mesmo perante o Supreme Court a que agora se junta), e tem também experiência executiva, tendo feito parte da administração, conhecendo a vida de gabinete e sendo tido como ferramenta valiosa por aqueles que com ele trabalharam no governo (quando a Secretary of State Condoleeza Rice o apresentou a 5 de setembro dizia que “o Brett ouve, ouve com especial atenção aqueles de que discorda”).

É um académico brilhante, especialista em “separação de poderes” e um professor reconhecido como excepcional pelos seus alunos e pares.

4.  Ao longo da última década foi juiz no U. S. Court of Appeals for the District of Columbia Circuit, presidido pelo tal Merrick Garland (que Kavanaugh veio elogiar quando foi nomeado por Obama e que agora fez o mesmo quanto a ele), tendo participado em importantes decisões judiciais (como sobre o Obamacare) e tendo um estilo acessível, marcante e convincente, admirado pelos que dele discordam e citado mesmo em decisões do Supreme Court.

5. Para os “catastrofistas”, note-se, aliás, que o juiz Kavanaugh terá votado de forma igual ao juiz Garland em 93% das decisões que tiveram juntos naquele tribunal.

6. Era, aliás, considerado por muitos como uma escolha relativamente moderada e equilibrada em alternativa a outros juízes considerados pelo Presidente Trump, foi uma escolha inclusivamente elogiada por liberais (e imaginava-se a possibilidade de, em algumas matérias, ser ele o “swing vote” e permitir um novo diálogo com os juízes Breyer e Kagan em matérias de Direito penal, processual penal ou administrativo – como aliás, já acontecera neste ano com o juiz Gorsuch ou com o Chief Justice John Roberts Jr. que votaram com os liberais em decisões em que o juiz Kennedy votou com os conservadores).

7. Foi clerk (um dos 4 assistentes que cada juiz daquele supremo tribunal tem em cada ano) do juiz Anthony Kennedy e terá sido um nome “patrocinado” por ele, perante quem entretanto fez o seu juramento, “conhecia os cantos à casa”, prometendo manter métodos de trabalho (desde a lógica argumentativa e de “counter-clerks” daquele juiz) e seguir o estilo do seu antecessor.

8. Para além da sua carreira académica e profissional, é um cidadão empenhado e envolvido na comunidade, responsável por levar refeições a sem-abrigo no âmbito do programa “St. Maria’s Meals”, junto das Catholic Charities, sendo ainda tutor na Washington Jesuit Academy.

9.  É antigo aluno dos jesuítas: estudou na Georgetown Preparatory School, escola dos jesuítas (onde foi colega, dois anos acima, do juiz Neil Gorsuch a que agora se junta) e nos seus discursos e intervenções públicas repete a ideia de que tenta ser um “homem para os outros”, como aprendeu naquela escola (o que inspira os seus voluntariados e ensino em universidade de elite, mas também em escolas de alunos carenciados).

10. É um pai que procura acompanhar de perto as suas filhas, participando ativamente na vida da sua escola, sendo há vários anos o “Coach K” das equipas de basquetebol das filhas que treina nos seus tempos-livres.

11. Dezenas de companheiros e amigos vieram defendê-lo e afirmar como para eles e elas era impossível acreditar que o Brett que conheciam tivesse aquele comportamento censurável, nos anos 80, 90 ou 2000 – 65 colegas de escola assinaram declarações e repetiram que era impossível, mulheres que com ele trabalharam nas mesmas equipas ou por ele foram contratadas nas funções que desempenhou. Para todos seria surpreendente que aquele acusado se tivesse transformado num homem tão completo e tão bom como o que se foi evidenciando para os que com ele contactaram mais de perto nas últimas décadas.

12. O comportamento que teve desde a confirmação: o discurso conciliatório e comprometido (“assumo estas funções com gratidão e sem amargura”), as pessoas que escolheu para com ele trabalhar (a primeira equipa de clerks totalmente feminina, escolhida ainda antes da polémica), o esforço que tem procurado demonstrar e uma ideia de procurar “acertar” que marca a sua carreira e pode ser a chave para que, mesmo depois deste processo doloroso, ainda tenha marcas de moderação.

E, em dúvida, a sensatez aponta para, sem provas, não condenarmos alguém e o excluirmos do serviço e da vida pública (e ele já ficou “manchado” para sempre, isto vai certamente acompanhar o seu nome até ao fim da sua vida).

13. A rejeição de penas perpétuas (dizia também a Carla que “cada pessoa é responsável pelos seus actos quer aos 17 quer aos 50 quer aos 77 anos até morrer”, significa isso penas para sempre? A perda de direitos políticos e cívicos até à morte?) e a presunção de inocência aliada à dúvida que é esta “carga de água”. E, em dúvida, a sensatez aponta para, sem provas, não condenarmos alguém e o excluirmos do serviço e da vida pública (e ele já ficou “manchado” para sempre, isto vai certamente acompanhar o seu nome até ao fim da sua vida).

São tudo razões que me fazem discordar da ideia de que a retórica venceu e a sensatez não, e querer vir defender quem votou nele, defender que foi sensato aprovar e votar neste sentido. Até mais do que defender este juiz que certamente não era o meu nome preferido dos vários que se falaram e que temo ter ficado “estragado”/”extremado” para sempre depois deste processo de confirmação em que todos perderam (vale a pena ler este texto!).

No entanto, fico a torcer para não termos aqui outro juiz Thomas, um velho conservador que também ficou marcado por um atribulado processo de confirmação, não tendo a capacidade de “fazer pontes” e chegar ao “outro lado”, e a esperar que o novo juiz Kavanaugh faça aquilo que prometeram e continue a ouvir (como o juiz Kennedy ou a juíza O’Connor que o antecederam). E oiça especialmente aqueles de que discorda mais. Precisam disso no Supreme Court, precisamos muito disso – de ouvir mais aqueles de que discordamos – em todo o lado, da justiça à política, nos EUA ou em Portugal.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.