Tonino, o Contador de Histórias

As histórias têm pés de lã e chegam de mansinho, a embalar-nos, ou a despertar-nos do sono que nos fecha os olhos ao encanto e à urgência.

Uma amiga minha, professora, propôs aos alunos um tema para um trabalho de escrita:

As ruas estão vazias, completamente desertas. As personagens andam à nossa procura.

 

À minha cidade de fronteira, sinto chegar Tonino, o Contador de Histórias. Já há algum tempo que havia sido exilado, bem longe. Muito antes da quarentena. Agora, voltou. Sem bagagem para além da memória. Walter, um justo do século passado, declarava que o contador de histórias tinha deixado de ser entre nós uma presença viva e eficaz. Entre nós, diz Walter. Eu penso em nós, e no que isso significa, mas ainda não encontro resposta.

Alguns estão sozinhos e fechados, como Emily. Outros, saem à varanda, aos pares, como fazem os pássaros. Também há quem viva em família, com o choro do bebé pelo corredor da casa, que nunca mais acaba. Uma casa que fosse infinita. Pela minha janela, entra uma nespereira. Pela janela do vizinho, uma laranjeira e o latido de um cão. Outros vivem sem janelas. Os vizinhos cumprimentam-se, de longe. Há, em tudo, intimidade e distância.

Eu estou à espera de Tonino, que regressa, e imagino-o nas ruas, passando pelas casas dos outros. O Contador de Histórias sempre se conheceu nómada. Traz o céu consigo. Conhece a calma e as intempéries, o refúgio e o perigo. Percebe que na mudança dos caminhos, o céu continuará o seu passo lento e imprevisível. É só aqui que tudo passa e tudo corre. Somos de um mundo frágil, diz Tonino. E sorri.

Porque sorris?, pergunta Emily, a Solitária.

Tonino conta: Quando no outono as árvores estavam nuas, uma tarde a nuvem de pássaros exaustos poisou sobre os ramos. Pareciam ter regressado as folhas baloiçando ao vento.

Emily notou, cheia de espanto, que a voz ainda existe. É um tempo tecido de ausências, mas ainda não perdemos a voz. Os isolados sentem de forma violenta a insuficiência do escrito para celebrar a vida. A voz não fala apenas o que diz; fala também uma presença, um calor que nos consola. Tonino, o Contador de Histórias, nunca dispensa a sua voz.

Emily, no entanto, levou tempo a perceber porque sorriu Tonino quando disse: Somos de um mundo frágil. Levou tempo a perceber como as histórias são capazes de dizer a fragilidade, no seu rosto espantoso e claro. O mundo não é um bem adquirido. A gota de orvalho, as abelhas, a brisa, as folhas em redemoinho, os passeios pela barra ao longo da costa. E a beleza ainda não desertou.

Eu estou em casa, à espera da salvação. Pela minha janela, entra uma nespereira. Imagino que alguém se levanta, entre o tumulto, para contar uma história.

O vizinho do apartamento de cima, Eduardo, o Urugaio, sussurra da varanda: O vento apaga o rasto das gaivotas. As chuvas apagam o rasto dos passos humanos. O sol apaga o rasto do tempo. Os contadores de histórias procuram o rasto da memória perdida, do amor e da dor, que não se vê, mas não se apaga.

Eu estou à espera de Tonino, a alguns quarteirões dali, e imagino-o pelas ruas, procurando rastos. Rastos que podem vir de há muitos séculos, e outros que foram deixados por criaturas pequenas, bem de manhã no dia de hoje.

Passam carrinhas que lançam jactos de água e álcool sobre os passeios. Atrás passa Tonino, verificando se nenhum amor se perdeu. Se nenhuma palavra verdadeira foi apagada. Ele cruza uma esquina, ao fundo, e noto-o, de repente, atento ao que está chegando. Imprevisível e surpreendente. O mesmo amor de sempre, em gestos novos. Percebo que o guarda no coração. Quer saber recordar, mais tarde.

À volta de Tonino é só silêncio. A erva, à margem do aqueduto, cresce desgovernada. Uma borboleta poisa sobre um muro. Tonino dá por si a recordar os amigos. Dedico esta hora aos amigos, onde quer que estejam. E coloca-se de olhos fechados, dizendo os seus nomes em voz alta. São agora mais urgentes as palavras que trazem rostos.

Eu estou em casa, à espera da salvação. Pela minha janela, entra uma nespereira. Imagino que alguém se levanta, entre o tumulto, para contar uma história. Estendo os olhos para lá dos muros do quintal e vejo em cada uma das casas a noite acender candeias. Quão bom seria se um vizinho contasse uma história, sussurrada pela parede, e a casa tremesse. Sabes, oiço-o dizer, há dias aconteceu-me a coisa mais espantosa…

Porque as histórias têm pés de lã, como João Pestana, e chegam de mansinho, a embalar-nos, ou a despertar-nos do sono que nos fecha os olhos ao encanto e à urgência. O gesto que reúne toda a vida, todo o mundo, todo o tempo, como me disse faz alguns dias alguém que amo. As histórias falam sempre do lugar e do tempo do amor.

E à minha procura vem Tonino, o Contador de Histórias, que tem bigode, e eu quase podia jurar que fala com a voz do meu Avô.

 

Fotografia de Dan Formsma – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.