Não somos propriamente um povo versado na sua História e que valorize a formação neste domínio, ao contrário do que sucede, por exemplo, em muitos países europeus. A disciplina não tem sido bem tratada, sendo mesmo considerada menos importante que outras áreas do saber; os seus licenciados não são devidamente reconhecidos e as publicações de História, escritas por historiadores de formação, não entram nos tops de vendas. No entanto, não faltam curiosos e habilidosos que, apesar de não terem habilitações bastantes para tal, não hesitam em sentenciar, compondo um ar de entendidos, sobre os mais variados acontecimentos históricos e até escrevem livros, que procuram colorir com algumas efabulações para facilitar a sua colocação nas prateleiras dedicadas à História. Nestes casos, bem mais preocupante que o escasso ou nulo conhecimento sobre os assuntos é a falta de consciência e a negação dessa limitação. Falta, afinal, a humildade dos sábios! Os ensinamentos de Sócrates, o filósofo grego, ainda não perderam a atualidade!
A propósito e a despropósito, discutem-se assuntos de profundidade histórica sem qualquer fundamento, promovem-se arremedos de debates feitos de vazios, alinham-se argumentos condenados a entrar no rol das falácias. Como historiadora não me sinto habilitada para escrever sobre economia, debater astronomia ou dissertar sobre biologia. Quando muito, poderei dizer algumas generalidades, dar uns palpites… Posso/devo ler e procurar informação sobre essas matérias, ouvir quem sabe e aproveitar para, na condição de leiga assumida, fazer perguntas e tentar aprender… Mas não me atrevo a tirar conclusões sem qualquer fundamento credível e, muito menos, a lançar suspeições insolentes sobre quem, por formação, e até por vocação, é especialista na matéria. Então, urge perguntar: porque é que isto acontece com a História? A meu ver, deve-se, em larga medida, à pouca importância que lhe tem sido atribuída e pelo lugar secundário que ocupa na formação escolar das nossas crianças e jovens. Valoriza-se, e bem, a economia, a astronomia e a biologia, reconhece-se que são áreas que devem ser tratadas por especialistas, mas poucos reconhecem que a História é um campo específico, a ser tratado por quem tem formação em História. A investigação nesta área tem normas, especificidades e os historiadores também têm a sua linguagem e os seus procedimentos. Considera-se, e bem, que o nosso país precisa de médicos, engenheiros, economistas, advogados… E os historiadores, para que servem?
A ligeireza com que se trata a História é deveras preocupante e acarreta consequências, sobre as quais tendemos a não refletir.
A ligeireza com que se trata a História é deveras preocupante e acarreta consequências, sobre as quais tendemos a não refletir. Só a título exemplificativo, atente-se nos programas noticiosos que abordam conflitos atuais, como o israelo-palestiniano. Opina-se sobre o mesmo, atiram-se alguns lugares-comuns, mas quantos conhecem a origem do conflito e a sua profundidade histórica? A instabilidade no Médio Oriente, as guerras que abalam o continente africano e as difíceis relações entre diferentes grupos étnicos e religiosos são noticiadas, comentadas em programas informativos, mas quantos conhecem as suas origens? O desconhecimento destas compromete a compreensão do acontecimento, faltando a consciência de que a linha que separa o presente do passado é muito ténue, e que o primeiro rapidamente dá lugar ao segundo. Ora, o passado não deve ser ignorado, precisamos de o resgatar para compreender um hoje que rapidamente se vai transformar em mais um ontem. Enquanto acharmos que o passado é algo que não precisa de ser cientificamente estudado, continuamos a não compreender o presente e a manter as já estafadas discussões vazias, que levam a leituras distorcidas do passado.
Um dos erros mais comuns que cometem aqueles que não são historiadores e que teimam em achar que a História é um domínio sobre o qual todos podem conjeturar, opinar e escrever são os anacronismos. Tentar avaliar o passado com olhos do presente, não só é errado, mas também perigoso. Tal já aconteceu no passado e ocorre no presente, abrindo o caminho a posições extremadas e a discursos enviesados. Um historiador sabe disso, como também sabe que não há um passado, mas diferentes interpretações do passado e que isso não inviabiliza a História. Pelo contrário, faz dela uma ciência plural, dialogante, que não se entrincheira em extremismos, mas que aceita que o passado é passível de ser constantemente estudado, com base em fontes que se analisam, cruzam e interpretam e que permitem construir múltiplos passados. Os historiadores não constroem castelos de areia, não se permitem fazê-lo, investigam seguindo uma metodologia que é tão credível, e assim deve ser reconhecida, como a de qualquer outro cientista social.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.