Testamento vital, um direito pouco usado pelos portugueses

As Diretivas Antecipadas de Vontades são uma importante ajuda no processo de tomada de decisão, permitindo que os profissionais de saúde vão ao encontro das preferências do doente no que concerne a suporte artificial de funções vitais.

Numa época em que tanto se fala de autonomia e está em processo de legalização a possibilidade de cada pessoa marcar o dia e hora da sua morte em caso de sofrimento por lesão definitiva, de gravidade extrema, ou doença incurável e fatal (“Lei da morte medicamente assistida”, aprovada pela Assembleia da República Portuguesa em 29/01/2021), é surpreendente verificar que apenas 0,34% da população residente em Portugal tem Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV) registadas no Registo Nacional de Testamento Vital (RENTEV).

Em 2012, os portugueses conquistaram o direito a expressar que cuidados de saúde desejam ou não receber no caso de se encontrarem incapazes de, autonomamente, prestar o seu consentimento livre e esclarecido para o efeito, através das DAV e/ou nomear um Procurador de Cuidados de Saúde (Lei n.º 25/2012 de 16 de julho). No entanto, segundo dados do Portal da transparência do SNS, em 21 de maio de 2021 estavam registados no RENTEV apenas 34.919 testamentos vitais, 58% dos quais dizem respeito a pessoas com menos de 65 anos.

Por princípio, quando um profissional de saúde, nomeadamente um médico, propõe um procedimento de diagnóstico ou um tratamento, espera que este corra bem e seja benéfico para o doente. Mas nem sempre assim acontece e, por vezes, o doente não beneficia o esperado com o procedimento, pode mesmo ficar pior ou até morrer. Ainda recentemente tive a oportunidade de acompanhar um doente que, no pós-operatório de uma cirurgia cardíaca programada, teve um acidente vascular cerebral extenso e ficou em coma, ligado a um ventilador. Após meses sem recuperação neurológica significativa, a equipa assistencial começou a questionar-se se a manutenção do suporte ventilatório e outras medidas terapêuticas, não constituiriam encarniçamento ou obstinação terapêutica agravando o sofrimento do doente e dos seus cuidadores.

O sofrimento é uma experiência única para cada individuo, já que depende do efeito direto de uma lesão ou ameaça, mas também dos significados e valores que a pessoa lhe atribui. Para autores como Viktor Frankl (in “O Homem em busca de um sentido”), o que destrói o Homem não é o sofrimento por si só, mas o sofrimento sem sentido.

O sofrimento é uma experiência única para cada individuo, já que depende do efeito direto de uma lesão ou ameaça, mas também dos significados e valores que a pessoa lhe atribui.

Segundo o Código deontológico dos médicos (artigo 67º), “o uso de meios extraordinários de manutenção de vida deve ser interrompido nos casos irrecuperáveis de prognóstico seguramente fatal e próximo, quando da continuação de tais terapêuticas não resulte benefício para o doente” e “o uso de meios extraordinários de manutenção da vida não deve ser iniciado ou continuado contra a vontade do doente”. E, pelo princípio da proporcionalidade, um profissional de saúde não pode negar cuidados a um doente por medo dos efeitos secundários, mas o benefício do tratamento deve ser superior aos efeitos secundários das medidas utilizadas e ao prolongamento do sofrimento. Daqui se depreende que a adequação ética de uma medida de saúde não depende da medida em si, mas dos objetivos pretendidos em cada doente.

Para uma adequada avaliação da utilidade / futilidade de uma medida de diagnóstico e / ou tratamento, os profissionais de saúde têm de analisar cientificamente os factos (isto é, o que a experiência e os estudos prévios demonstram), fazer um julgamento de valores e significados atribuídos pelo doente aos factos presentes e possíveis resultados futuros (crenças, valor da vida, autonomia, entre outros) e avaliar os recursos existentes. Por tudo isto, a afirmação de utilidade ou futilidade diagnóstica e/ou terapêutica tem de ser contextualizada e centrada no doente individual.

O consentimento informado, esclarecido e livre do doente para a realização de medidas de diagnóstico e terapêutica, permite criar uma aliança terapêutica segura e tranquilizadora para o doente e o profissional que as vai realizar. Para que isso aconteça o profissional tem de ter competências de comunicação adequadas para explicar, de forma compreensível, os benefícios e riscos dos procedimentos, incluindo o eventual risco de morte ou incapacidade física e/ou mental. Deve ainda explicar as alternativas terapêuticas possíveis caso o procedimento não corra como desejado.

Sendo certo que os profissionais de saúde têm o dever de agir no melhor interesse do doente, os doentes devem também questionar os profissionais sobre as suas dúvidas e medos, procurando informar-se sobre os procedimentos que lhe são propostos, o que, infelizmente, não acontece muitas vezes. Se antes de uma cirurgia major ou qualquer outro tratamento que possa por a vida em risco, médicos e doentes falassem abertamente sobre a possibilidade do procedimento não correr bem e fizessem diretivas antecipadas de vontade, evitar-se-iam certamente muitas medidas fúteis que, para além de provocarem sofrimento no doente e/ou familiares, consomem desnecessariamente recursos de saúde.

Perante um doente incapaz de expressar a sua vontade de forma livre e esclarecida, e no caso dessa vontade não ter sido previamente comunicada ao profissional de saúde, o profissional terá de se socorrer de familiares do doente ou outras pessoas que o conheçam e presumir o que este desejaria que lhe fosse feito. Nestas situações as DAV são uma importante ajuda no processo de tomada de decisão, permitindo que os profissionais de saúde vão ao encontro das preferências do doente no que concerne a suporte artificial de funções vitais, cuidados paliativos, alimentação e hidratação que apenas visam retardar o processo natural de morte, transfusão sangue ou derivados, participação em estudos de fase experimental e outros.

Fazer o registo das DAV é um direito que nos assiste e pode contribuir para que vivamos com dignidade o tempo de vida que nos resta quando ficamos incapazes de nos expressar diretamente.

A Lei n.º 25/2012 de 16 de julho, permite-nos também designar um Procurador de Cuidados de Saúde a quem são atribuídos poderes para decidir sobre os cuidados de saúde que desejamos receber, ou não receber, quando nos encontramos incapazes de expressar a nossa vontade pessoal e autonomamente.

Formalizadas através de documento escrito, assinado presencialmente perante funcionário devidamente habilitado do RENTEV ou notário, as DAV são válidas por um período de cinco anos, podendo ser revogadas ou modificadas pelo autor, em qualquer momento. As DAV e procuração de cuidados de saúde podem ser feitas em texto livre, cumprindo os requisitos definidos na lei nº 25/2012, de 16 de julho (artigo 3.º) mas, existe um formulário específico para o efeito, disponível na área do cidadão do Portal do SNS e nos sites dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) e das Administrações regionais de Saúde, IP (ARS, IP). Embora não seja obrigatório, as DAV e procuração de cuidados de saúde devem ser entregues nos balcões RENTEV, ficando assim disponíveis para consulta médica em caso de urgência ou outro tratamento específico.

A morte faz parte da vida e dizem que se morre como se vive. Fazer o registo das DAV é um direito que nos assiste e pode contribuir para que vivamos com dignidade o tempo de vida que nos resta quando ficamos incapazes de nos expressar diretamente, sem prolongar sofrimentos desnecessários, nem passar a terceiros a decisão sobre os cuidados de saúde que desejamos ou não receber.

Fotografia de: Piron Guillaume – Unsplash

 

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.