Tecno-escravizados: libertem-se! - Ponto SJ

Tecno-escravizados: libertem-se!

Quantos de nós vagueamos pelas redes, num refresh contínuo e com uma sensação de vazio e de tempo mal gasto, enquanto a vida corre "lá fora"? Talvez o tempo de férias seja o ideal para nos libertarmos deste vício.

Há alturas na nossa vida em que caminhamos sem que nada nos toque. Acordamos, scroll, tratamos das crianças, scroll, trabalhamos, mais um scroll, grupos de whatsapp – petições, piadas, pedidos -, scroll, tarefas domésticas, scroll, Netflix e scroll, dormir e no dia seguinte repetir.

Muito ocupados, sem tempo e sem espaço para pensar, para refletir e para decidir, vamos seguindo sob orientação do algoritmo, comprando mais do que precisamos, reforçando as nossas opiniões sem contraditório, cada vez mais acorrentados a uma realidade que nos
cansa, desgasta e limita.

Era nesse ritmo de vida, meio tonto e sem sentido, que andava quando, no dia seguinte à Páscoa, recebi com o mundo a notícia da morte do Papa Francisco – talvez a figura que mais influenciou o meu pensamento e a minha visão da justiça e da Casa Comum na vida adulta.

Os dias que se seguiram foram de silêncio, de introspecção, de partilha com tantos companheiros da Economia de Francisco, e de agradecimento por tantas alegrias e por tantos processos iniciados. Foram dias intensos, mas, naquele tempo de espera e oração, foi claro para mim que não era só hora de olhar para o que tínhamos vivido. Estava na hora de iniciar mais um processo, desta vez pessoal, inspirado mais uma vez pelo Papa Francisco, que não era pessoa para se deter, e aquele momento também não era momento para me deter.

A consciência de que o tempo de ecrã e as redes sociais me estavam a tirar tempo, espaço e liberdade já tinha sido tomada há algum tempo, mas faltava o ímpeto para cortar com um vício – não há outra forma de o dizer – que me estava a impedir de avançar.

E assim foi, nos primeiros dias de maio de 2025 apaguei as redes sociais, e tentei limitar o tempo diário de telemóvel ao mínimo indispensável, sem saber bem o que esta decisão me iria trazer, mas disposta a tentar perceber se ainda sabia ser em formato analógico.

Porque o presente é o único tempo que temos. É este o nosso tempo. Não habitamos num tempo histórico idealizado, nem vivemos num tempo futuro que ainda está por definir.

Os parágrafos que se seguem são reflexões soltas de dois meses de detox tecnológico, de quem ainda tem mais perguntas do que respostas sobre como ser pessoa na era digital, mas que não está disposta a abdicar do sistema operativo “criado à imagem e semelhança de Deus” e a atualizar para o sistema operativo “criado por IA”.

(As reflexões vêm acompanhadas de banda sonora, que a beleza da criação artística também nos ajuda a libertar do fast food digital a que nos habituámos.)

Semana 1-2. A prisão não eram bem as redes sociais, como pensei. É o objeto: o telemóvel. Difícil não estar sempre ligado, refresh contínuo de emails do trabalho, refresh nos emails pessoais, whatsapp continua a ser difícil de gerir. Sensação de vazio das redes sociais, compensada com um jogo de telefone que ainda estava instalado no telefone desde os tempos da faculdade (porquê?). Tenho mais tempo? Não me entendo particularmente mais produtiva, nem particularmente mais livre. Seguimos.

Oh, Algoritmo! – Jorge Drexler

Semana 3. Manter-me fiel ao objetivo e aceitar o desconforto. Não fomos criados para o automatismo, precisamos do complexo e do desafiante. Quão presa estou às minhas rotinas e aos dias repetitivos sem espaço para conversa, partilha e olhar para o mundo à nossa volta? Abrir espaço para escutar e estar atento à fragilidade e vulnerabilidade das realidades que me rodeiam.

Tenta – Esteves sem metafísica

Semana 4. Progressos! Menos necessidade de estar sempre a olhar para o telefone. Criar à entrada da casa o lugar do “telefone fixo” para manter o telemóvel. Sensação de que estou a ganhar espaço mental para sair do piloto automático. Inverter a lógica ação-reação. O que
fazer com o tempo e o espaço que recuperamos quando nos afastamos do ritmo frenético do digital?

Em vez do Mundo Acabar – Márcia

Semana 6. Contemplar e rezar mais. Deixar as crianças na escola e seguir para meia hora de caminhada ou corrida ao ar livre junto ao mar. Fugir à tentação de compensar o tempo livre com mais tempo de trabalho (laboral ou doméstico). Não ocupar todo o tempo – com música, podcasts, telefonemas, resposta a solicitações. Voltar a dar tempo ao silêncio.

O que for e o que virá – Tiago Bettencourt

Semana 7. Mote: andar ao ritmo das pessoas e não das máquinas. Abrir-me às surpresas do dia-a-dia (boas ou más) e aproveitar o que me é dado para viver em cada momento. Ativar mais vezes o modo voo. Lembrar o Jubileu da Esperança e a necessidade de limpar a névoa em que a nossa individualidade nos envolve, e criar as condições para cultivar boas sementes de futuro, em nós e nos outros.

God Only Knows – The Beach Boys

Mas para quê desinstalar-nos? Porquê dar atenção aos conflitos e desafios do tempo presente? Porquê sair da dormência em que o mundo digital nos deixa?

Porque o presente é o único tempo que temos. É este o nosso tempo. Não habitamos num tempo histórico idealizado, nem vivemos num tempo futuro que ainda está por definir.

O verão é sempre um tempo mais favorável para desacelerar e desconectar. Que possamos aventurar-nos a encontrar saídas e novos pontos de partida sonhando e construindo uma Casa Comum mais justa e humana.

Existimos no hoje, com todos os seus desafios, que precisa de cultivar a esperança, porque só assim há amanhã. E se queremos que os nossos irmãos, filhos, netos, aprendam a ser pessoas e a viver em comunidade, temos de construir esse espaço para deixar florescer as relações, porque só assim construímos uma sociedade que cuida da criação, inclui os mais frágeis e promove a dignidade humana.

Ser criado “à imagem e semelhança de Deus” é ser criado para a grandeza! Para o bem, para a bondade e para a verdade. Para construir o Reino a cada dia, mas já hoje, não começando amanhã.

Estamos (humanidade) juntos nesta aventura que é a experiência de estar vivo neste tempo e nesta Terra, com toda a beleza e fragilidade da nossa condição. E se todas as experiências de amor trazem sofrimento, a experiência de construir uma sociedade justa e fraterna não será diferente, mas será sempre infinitamente melhor e mais rica do que a resignação aos desafios da vida que se vai artificializando atrás de um ecrã.

O verão é sempre um tempo mais favorável para desacelerar e desconectar. Que possamos aventurar-nos a encontrar saídas e novos pontos de partida sonhando e construindo uma Casa Comum mais justa e humana.

How Deep is Your Love – PJ Morton

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.