Superar o nosso contexto: educação ou marginalidade?

Aceitar o desafio de repensar o nosso modelo educativo, a forma como o analisamos e avaliamos é um ato corajoso e desafiante que seguramente se fará de avanços e recuos e com resultados apenas visíveis a longo prazo.

«A maior parte das pessoas que eu entrevisto não tiveram oportunidades e são fruto da desigualdade que existe no mundo. Quanto mais desigualdade, mais violência, mais crime. É um facto», disse Mariana Van Zeller, autora da série Trafficked, da National Geographic, numa entrevista recente à SIC Notícias. Ouvi estas palavras, numa noite de verão igual a tantas outras, enquanto respondia a vários emails da escola dos meus filhos para concluir o processo de matrícula de uns e comprar livros escolares de outro.

Na mesma entrevista contou a história de um rapaz peruano de 16 anos que acompanhou durante um dia. O rapaz carregava cocaína por um dos percursos mais perigosos do mundo e quando lhe perguntou o porquê de o fazer, o rapaz respondeu-lhe que queria ir para a universidade e que o dinheiro que conseguiria a fazer esse trabalho era a sua melhor hipótese já que os pais não tinham condições para comportar os custos de uma licenciatura. Queria ser dentista, porque nos anúncios de dentistas as pessoas sorriem muito, e ele queria fazer as pessoas felizes.

Interpelada pela humanidade e fragilidade daquele contexto, refleti sobre o papel determinante que a escola tem e pode ter no mitigar da pobreza infantil e das desigualdades tão acentuadas em vários locais do globo, das quais o nosso país não foge.

As crianças que vivem em pobreza e exclusão social são condicionadas no seu desenvolvimento cognitivo, na qualidade de saúde, nas relações sociais e na sua futura participação no mercado de trabalho, sendo muitas vezes atiradas para vidas de marginalidade e criminalidade como consequência das deficiências dos nossos sistemas públicos. O combate à pobreza infantil permite melhorar a qualidade de vida das crianças de hoje, mas também lançar sementes de um futuro com mais oportunidades e mais justiça social. Qual o custo de perpetuar este ciclo?

Do ponto de vista económico, há estudos a colocar esse custo em 1% do PIB por ano[1], bastante mais elevado do que o valor associado à constituição por parte do Governo de uma qualquer task-force para pensar e adotar medidas de erradicação da pobreza infantil. Já de um ponto de vista social, um “elevador” que não sobe, havendo estudos a denunciar que em Portugal, quem nasce num contexto de pobreza demora em média 5 gerações até alterar o seu contexto.

De um ponto de vista social, um “elevador” que não sobe, havendo estudos a denunciar que em Portugal, quem nasce num contexto de pobreza demora em média 5 gerações até alterar o seu contexto.  

De acordo com o Estudo “Pobreza e Exclusão Social em Portugal: uma Visão da Cáritas (2024)”, em Portugal, as famílias com crianças têm uma taxa de risco de pobreza superior, em 2022 ascendia a 20,7%, um valor mais elevado que a média da área do euro, e quase o dobro do observado nos países com a taxa de pobreza infantil mais baixa na União Europeia.

Se olharmos para os dados das crianças que vivem em famílias com privação severa[2], 48,1% não têm possibilidade de ter roupa nova, 11,8% não têm possibilidade de celebrar ocasiões especiais, 19% não pode convidar amigos para brincar, 52% não participam em viagens escolares que custam dinheiro e 24,6% não tem um espaço adequado para estudar. Sendo que, em todos estes casos, é a capacidade de estabelecer laços sociais e de ter uma escolaridade plena que fica condicionada. São estas crianças que, como sociedade, estamos a deixar para trás.

Felizmente existem muitas entidades, a nível local ou nacional, que identificam estas crianças e famílias e trabalham para quebrar o ciclo da pobreza intergeracional, mas quebrar este ciclo tem de ser um eixo prioritário das políticas públicas.

A forma como olhamos para estas crianças e para o suprir das suas necessidades é também a forma como nos definimos enquanto sociedade, e o investimento na escolaridade e na qualidade das escolas é premente para uma sociedade mais pacífica e justa.

Basta entrarmos num  supermercado qualquer para nos apercebermos de que o novo ano escolar está à porta, e, em breve vamos ter os noticiários cheios de peças sobre colocação de professores e escolas que começam o ano letivo com o pé esquerdo, mas talvez não esteja para tão breve a implementação de medidas que enderecem estas desigualdades e que nos orgulhem de estarmos a fazer um esforço coletivo para, melhorando a vida das crianças de hoje, construamos um futuro mais justo para todos.

Uma escola pública forte e capaz de dar resposta às necessidades também (e sobretudo) dos mais pobres e vulneráveis é um ponto de partida fundamental para que as crianças tenham uma oportunidade renovada de superar o seu próprio contexto quer geográfico quer familiar.

Uma escola pública forte e capaz de dar resposta às necessidades também (e sobretudo) dos mais pobres e vulneráveis é um ponto de partida fundamental para que as crianças tenham uma oportunidade renovada de superar o seu próprio contexto quer geográfico quer familiar.

Aceitar o desafio de repensar o nosso modelo educativo, a forma como o analisamos e avaliamos é um ato corajoso e desafiante que seguramente se fará de avanços e recuos e com resultados apenas visíveis a longo prazo. Contudo, aceitar esse desafio é construir uma sociedade do futuro mais justa e pacífica e é sobretudo dizer a cada criança que entra pelo portão de uma escola que acreditamos, precisamos e contamos com ela, independentemente do seu contexto.

Políticas públicas de promoção da escolaridade e da qualidade do ensino são a chave para a diminuição das desigualdades e inversão de ciclos de pobreza e marginalidade, não permitindo enquanto sociedade que haja jovens a acreditar que a única solução para terem uma vida melhor é renderem-se ao tráfico.

 

Referências:

[1] Blanden, J., K. Hansen e S. Machin (2010), “The economic cost of growing up poor: estimating GDP loss associated with child poverty”, Fiscal Studies, Vol. 31, no. 3.

[2] População em que se verificam pelo menos sete das seguintes treze dificuldades, resultantes de restrições económicas: a) assegurar o pagamento imediato de uma despesa inesperada (sem recorrer a empréstimo); b) pagar uma semana de férias, por ano, fora de casa; c) atraso em pagamentos regulares; d) ter uma alimentação adequada; e) manter a casa adequadamente aquecida; f) dispor de automóvel próprio; g) substituir o mobiliário usado; h) substituir a roupa usada; i) ter dois pares de sapatos de tamanho adequado; j) gastar semanalmente uma pequena quantia de dinheiro consigo; k) participar regularmente numa atividade de lazer; l) encontrar amigos/familiares para uma bebida/refeição pelo menos uma vez por mês; m) ter acesso à internet para uso pessoal em casa.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.