A subtileza é a virtude do futuro. Creio. Melhor ainda, espero. No presente, a subtileza é mais castigo que ganho, mais pecado que glória. A arte de ser subtil não é finura com as palavras e, menos ainda, habilidade de réptil que sai de apertos passando pelas gretas das conversas. É antes a arte de captar as nuances, de reconhecer os cinzentos, de habitar os interstícios sem medo de se perder ou sem horror à hesitação, ao silêncio, à pergunta. Ora, na cultura do óbvio e num tempo de certezas absolutas, o pior dos anátemas é a “ambiguidade”: tudo o que não seja já e com ângulos retos é fraqueza e é cedência. Escudados na letra sagrada, acreditamos cumprir as Escrituras ao vomitar tudo o que não seja imediato “sim” ou “não”, condenando a realidade e os outros a partir da efervescência do nosso próprio nervosismo.
Por estas e outras razões, o último romance da matriarca espiritual dos escritores americanos, Marilynne Robinson, é um livro cheio de futuro. Jack é o quarto livro do que começou por ser uma trilogia. Em 2004, Robinson publicou Gilead, um romance em forma de uma carta escrita pelo Rev. John Ames, pastor de uma comunidade congregacionista no Midwest, e endereçada ao seu filho mais novo. No final da vida, John Ames deixa-lhe em legado uma longa meditação sobre a história vivida e as certezas que a fé de sensibilidade calvinista lhe foi dando e tirando, urdindo e desfazendo, ao longo das décadas que antecederam o ano de 1956. Neste primeiro romance, como nos outros dois que se lhe seguiram, Home (2008) e Lila (2014), há uma figura cuja ausência e depois a presença adquirem uma força quase magnética no pequeno universo de Gilead (Iowa): o filho de outro pastor congregacionista – Robert Boughton, chamado Jack. É a este personagem que Marilynne Robinson dá agora a palavra.
Num tempo em que nos habituámos a separar (ou deixar separar) o trigo do joio com uma violência de guerra santa, Jack convida-nos a abraçar a sábia paciência dos evangelhos e a ter um olhar realista e humilde sobre nós e sobre os outros.
Jack transporta-nos à cidade de Saint Louis (Missouri) nos anos quarenta, onde o filho pródigo de Robert Boughton preenche aquela ausência da casa paterna com a receita habitual de uma perdição anunciada: álcool, mentiras e roubo. Mas, e aqui se revela o génio de Robinson, este “passeio ao inferno” é uma densa perscrutação da alma humana. Jack é filho de um pastor e nada do que lhe acontece escapa a uma minuciosa análise espiritual. O mundo de Jack, que é o mundo de Robinson, é um lugar onde o conflito entre graça e pecado é o inescapável rosto da realidade e satura cada instante, cada instância. É sob a intensa luz dessa visão quase divina de cada gesto e palavra e pensamento que Jack guia o leitor à nunca banal vibração do que é ordinário e até vulgar. É também sob essa luz que aparece, no romance e na errância de Jack, Della Miles. A delicada e jovem professora negra atravessa a vida do personagem principal e, no conturbado contexto de segregação racial em que vivem, aceita acompanhar o passo vagante desse inusitado homem branco. Jack, que é todo ele consciência dos interditos e, mais do que isso, do contraste entre o seu passado e o futuro de Della, passa a viver rasgado entre a atração e o recuo, entre o desejo calado da graça e o merecido salário da perdição.
A pergunta feita romance em Jack, e já em Gilead, Home e Lila, é precisamente o irremediável da condição humana. Na tradição calvinista, onde a predestinação tem um papel que não tem nem nunca teve no seio do catolicismo, a perdição é uma opção tão real como a verdade dos seus efeitos na vida dos seres humanos. Marilynne Robinson interroga essa condenação antes do juízo, mas fá-lo a partir da matéria concreta do que somos. Não há aqui respostas simples, nem de signo positivo (Estamos todos salvos!), nem de signo negativo (É inevitável que alguns se percam!). Jack Boughton é ou podia ser exemplo do pecado feito vida, da perdição mudada em carne, mas a graça irrompe sempre e ainda, insinuando-se onde antes só havia o uniforme lastro da queda. Em sentido contrário, esses sinais de redenção nunca se transformam numa certeza, nem absorvem a existência de Jack e de Della a ponto de fazer da questão do bem e do mal uma paródia.
Finalmente, Marilynne Robinson conduz-nos e acaba por nos deixar a vaguear nesse lugar de luz e sombra, de hesitação, perguntas e ambiguidade. Jack não é um romance de bons e maus, nem sequer de bons que se transformam em maus ou de maus que descobrem, tardiamente, os encantos de ser bom. É um romance de uma lucidez rigorosa, às vezes mesmo exasperante, que coloca diante de nós essa “turba mista” que é o género humano e, no limite, cada um de nós. Num tempo em que nos habituámos a separar (ou deixar separar) o trigo do joio com uma violência de guerra santa, Jack convida-nos a abraçar a sábia paciência dos evangelhos e a ter um olhar realista e humilde sobre nós e sobre os outros. No limite, é de subtileza que se trata; essa arte da alma que vislumbra e discerne sem pressa de afirmar e expor, resistindo tanto à falsa certeza do pessimismo, como à tentação pueril de tudo absolver. Sim, Jack é um livro de outra época…
Jack
Marilynne Robinson
Farrar, Straus and Giroux
320 páginas.’
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.