Existe a perceção generalizada de que vivemos numa sociedade altamente individualista. Dizemos que andamos a perder mais tempo no telemóvel do que a conversar com quem precisa. No entanto, nunca contribuímos tanto para o coletivo. A nossa sociedade construiu um sistema de redistribuição que apoia muitos desfavorecidos. Os gastos públicos com educação, saúde e segurança social representaram €2.5 por cada €10 produzidos em Portugal em 2016 (representando apenas €1.4 por cada €10 há 30 anos).
O contribuinte médio nunca deu tanto de si em favor da solidariedade; ainda assim, imaginamo-lo individualista.
A solidariedade sistemática permitida pelos gastos públicos descritos acima tem muitas vantagens. Mas não chega sem custos: parte do nosso individualismo pode ser causado pelo nível elevado de despesa pública.
Aumentos de despesa pública tendem a levar a diminuições de despesa privada – fenómeno conhecido entre economistas como crowding out. Quando o Estado absorve riqueza da economia (passo necessário para depois ter gastos públicos), os privados ficam com menor riqueza para si próprios. Isto leva a que os privados reduzam os seus gastos. Normalmente, a preocupação é que os privados reduzam o seu nível de consumo; no entanto, poderá também haver um efeito na redução do seu gasto em solidariedade. Por cause dos gastos do Estado, as pessoas passam a ter menos rendimento disponível para apoiar o próximo.
Para além da dimensão monetária, o crescente papel do Estado também poderá reduzir a nossa solidariedade por nos destreinar de olhar para o outro. As estruturas criadas desresponsabilizam-nos, pois acreditamos que “alguém” terá a obrigação de resolver os problemas com que nos cruzamos. O resultado é que podemos já nem saber identificar dificuldades nas pessoas à nossa volta, por já não sabermos perceber as suas realidades. A crescente presença do Estado arrisca o deslaçar da sociedade.
É a solução acabar com o apoio do Estado aos mais fracos? Não.
O apoio do Estado aos mais fracos deve continuar. Mas o Estado deveria ter como critério apresentar-se como solução apenas quando a sociedade não a apresenta. Temos larga tradição de confiar na sociedade. Como aponta o presidente da Confederação Nacional de Instituições de Solidariedade, “há uma “cultura muito nossa” em que cada português se sente “guarda do seu irmão”(…). E quando se diz “cultura muito nossa” é porque, entre nós, a ação social direta (…) é muito anterior ao despertar do Estado para as suas responsabilidades sociais. Há capilaridade, caridade, cidadania, cooperação, gratuitidade, opção preferencial pelos mais carenciados, proximidade, solidariedade, subsidiariedade e voluntariado.”[1]
Há alguma coisa fácil e direta que se possa fazer? As nossas declarações de IRS já incluem a opção de doar 0.5% dos nossos impostos a uma instituição; que se torne essa doação obrigatória. Tem a vantagem de forçar o contribuinte a fazer uma escolha a favor de alguém em concreto. E já que estamos nisto, porque não aumentar a percentagem alocada a instituições, sem aumentar o nível de impostos? Seria uma forma de apoiar mais o que emana da sociedade, reduzindo assim a dependência desta em relação aos políticos e/ou burocratas que interferem na alocação destes dinheiros.
[1] Ver prefácio de Mendes, Américo. (2018). Importância Económica e Social das IPSS em Portugal.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.