Lembro-me de casa dos meus pais, dos meus avós e dos meus bisavós. Lembro-me, nos almoços de família, da mesa dos mais pequenos, muitas vezes arrumada num canto esquecido da cozinha. Lembro-me de ouvir (e calar) durante as conversas dos adultos. Lembro-me como se fosse ontem a minha avó dizer-me “agora a noite é minha, entretenha-se sozinho”. Lembro-me de olhar nos olhos da minha mãe com temor. Lembro-me de me levantar quando alguém mais velho entrava na sala. Lembro-me de pôr o braço no ar quando queria falar na aula de história, e esperar, esperar, esperar pela minha vez que nem sempre chegou.
Este não é um exercício de saudosismo. É um lembrete que se insurgiu durante a tarde e interrompeu a minha indignação com a desfaçatez do primeiro ministro demissionário. Vibrou no meu coração e alertou-me para a importância de uma coisa que a meu ver se têm ignorado com indiferença: o argumento de autoridade. Hoje, é comum desrespeitar os árbitros num jogo de futebol. É normal os pais, para estarem à mesma altura, se agacharem a torto e a direito quando falam com os filhos. É banal os políticos dizerem “queremos construir o nosso programa eleitoral consigo, querido e estimado eleitor”. É trivial haver momentos de televisão que apelam à sempre relevante e elevadíssima opinião dos telespetadores. Afirmação é sinónimo de arrogância. Assertividade é desprezo pela opinião alheia. O ponto de exclamação deu lugar ao ponto de interrogação. E ai de quem ousa não perguntar ao menino se está a sentir-se bem e se precisa de um benuron, se quer mudar de escola, se não gosta de puré de batata ou das políticas públicas em relação à descentralização. É que se está mal, muda-se, que o cliente tem sempre razão.
No outro dia fui invadido pela alegria de um grande amigo que me contava a sua nova e divertida aventura num restaurante daqueles em que quem cozinha, veja-se, somos nós próprios. Põem-nos a matéria prima à frente do prato, as gambas e o bife ainda crus, a deitar sangue ou a cheirar a peixe fresco, e desta vez é nossa a responsabilidade de confeccionar um bife mal passado e um camarãozinho ajillo. Depois de inundados com a fumarada de uma chapa a escaldar, com o cabelo a precisar de ventilação e os olhos inflamados, a roupa vai para lavar e qualquer dia ainda nos chamam para passarmos os pratos por água e promulgarmos ou vetarmos a nova lei da interrupção voluntária da gravidez.
Não tenho nada contra bifes na pedra. Mas por alguma razão votei naquele político, fui àquele restaurante, sou filho de alguém e pergunto as direções para chegar mais rápido a Ferreira do Zêzere. É que a vida funciona melhor quando confiamos ao outro a capacidade de tomar decisões que nós não seríamos capazes de tomar. A ideia que está no centro deste pensamento, que faz da igualdade um dogma que aplica em qualquer ocasião, como o aloé vera ou o óleo de coco, é, a meu ver, contra-natura. É a negação da própria natureza do Homem, que é, por direito de nascença, singular, única e irrepetível. Essa rejeição enfurece os deuses e, como tal, a confusão sobre que papéis havemos de desempenhar cresce à medida que os pais querem ser melhores amigos; os políticos, educadores de infância; os árbitros, auxiliares de educação; os fadistas, camanés, com prémios e carreiras consagradas à primeira nota que se solta da garganta.
Esta atitude, que contraria um modelo mais hierarquizado – com referências claras e lugares distintos para cada pessoa -, tem consequências na modulação da sociedade. Hoje, bradamos no espaço público porque desapareceram os líderes. Queixamo-nos de que não há quem tome decisões. E se há alguém que as toma, leva com uma lata de tinta verde que é para aprender a não ser autoritário. Um padre meu amigo, aquando das eleições, dizia-me que os candidatos perfeitos somos sempre nós próprios. Mas como nós não nos candidatamos e há quem o faça por nós, mais vale votar no mal menor. Hoje em dia aplico este pensamento em muitas ocasiões da minha vida.
Permitam-me algum conservadorismo. As crianças são crianças, o presidente da republica é o presidente da república, o cozinheiro é o cozinheiro. É porque acredito em autoridades que sou um democrata convicto e inveterado. Creio ter aprendido isto com o desporto e com o fado, onde ainda permanece em alguns lugares a percepção – a meu ver verdadeira – de que para o mundo evoluir é preciso quem nos aponte o caminho. E depois nós, quando chegar o tempo e o lugar certo, usamos a nossa liberdade para tomar uma decisão que corresponda às nossas convicções. Nos balneários das equipas de futebol, quando um jogador júnior vai treinar à equipa principal, pode ser bem recebido, civilizadamente (porque o contrário deve também ser condenado), sem estar no mesmo patamar dos jogadores profissionais. Que é como quem diz: alguma reverência não faz mal a ninguém. Nas casas de fado, os fadistas não residentes devem perguntar aos residentes ou aos donos da casa, com mais autoridade, se podem cantar. Nas equipas de futebol, o treinador decide quem joga e quem não joga, mesmo que não tenha razão. Tal como quem ganha as eleições ou como acontece com um pai ou uma mãe, que se podem enganar redondamente na escola que escolhem para os filhos. Nas casas de fado, há um dia em que o fadista que pediu para cantar se torna residente. E estas tradições fazem da vida das relações o que ela é biologicamente: um crescimento lento e sustentado. É preciso confiar e lembrar que há de chegar o dia de sermos nós os protagonistas. “Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu: Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derribar, e tempo de edificar. Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de saltar; tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de afastar-se de abraçar; tempo de buscar, e tempo de perder; tempo de guardar, e tempo de deitar fora; tempo de rasgar, e tempo de coser; tempo de estar calado, e tempo de falar; tempo de amar, e tempo de aborrecer; tempo de guerra, e tempo de paz”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.