Silêncio – artes de fazer

O silêncio não é só uma forma de calar. Calados, dizemos e fazemos muito. Em poucas linhas, este texto convida-nos a explorar até onde pode chegar o silêncio (e o que pode sair daí).

«Deus que não nos encurralas
no corpo das palavras ou dos ídolos»
(José Augusto Mourão, O Nome e a Forma)

 

Em 2017, a editora Quetzal trouxe até nós um livro de Erling Kagge – «Silêncio na era do ruído». O autor escreve sobre uma travessia solitária da Antártida, na direção ao Pólo Sul. O livro é uma narrativa de viagem, mas a paisagem que os leitores descobrem é interior. É também um livro de descobertas, mas é o silêncio o principal achado do autor. Talvez, por isso, só 20 anos depois tenha escrito acerca deste descobrimento do silêncio.

No ano anterior, na conferência de abertura do encontro «Correntes d’Escritas» de 2016, na Póvoa de Varzim, José Tolentino Mendonça, a propósito do silêncio dos livros, propunha, poética e profeticamente, que classificássemos o silêncio como património imaterial da humanidade. Propunha-o como experiência de humanização, numa sociedade saturada pela hiperestimulação dos sentidos.

Os crentes têm uma forte relação com o silêncio nas práticas rituais e orantes, contexto em que o silêncio habita a palavra e o gesto. Esse pode ser um dos substratos para a pergunta «o que é o silêncio?».

As antropologias do sagrado têm mostrado como a comunicação com Deus encontra, no silêncio, um veículo privilegiado. As vigilâncias e interdições acerca do uso de um nome ou de um rosto para Deus, no sagrado monoteísta, podem ser lidas como sintomas de uma falta. Nesta perspetiva, o nome e o rosto não garantiriam as qualidades de transcendência necessária, desqualificariam Deus, permitiriam a sua captura. Em muitas especulações clássicas, o silêncio é o que mais se pode aproximar da natureza de Deus. Para Apolodoro de Atenas (séc. I a.C.) o silêncio imita a natureza divina. O pensador judeu André Neher, sublinhou como, em algumas tradições judaicas, o silêncio se apresenta como a forma mais eloquente de revelação. Perante Deus, o teólogo cristão Gregório de Nazianzo (séc. IV) recomenda um hino de silêncio. E há ainda o silêncio como génese. Para o teólogo e místico luterano Jakob Böhme (séc. XVI-XVII), a experiência do silêncio é uma aproximação ao que Deus era, antes da natureza e da criação.

Nesta linha de pensamento e experiência, o silêncio não é um obstáculo à comunicação, ou a sua ausência. Ele corresponderia a um estado de comunhão em que a linguagem se torna caduca. No discurso dos místicos, este tópico, como sabemos, prolifera. Segundo João da Cruz, «o Pai só proferiu uma palavra: o seu verbo», proferiu-a num silêncio eterno e só no silêncio pode ser escutada. O silêncio é, então, a matéria da comunicação de Deus. Mas, na experiência cristã, o silêncio não é o reduto da solidão de Deus. O silêncio não é uma forma de falar de um Deus que não se importa. Se fosse esse o caso, o nosso silêncio traduziria a nossa própria impotência – o silêncio de Deus e o nosso próprio silêncio seriam duas faces de uma mesma impossibilidade de relação. Nesse sentido, quando olhamos a experiência orante e ritual, como habitat de comunhão, descobrimos que o silêncio não é uma renúncia à palavra, ao canto e ao gesto (ou à dança).

Embora bem firmada na tradição, a ideia de um silêncio como génese parece-me lacunar. Nessa perspetiva, a descrição, a veneração, o louvor, a reverência seriam sempre palavras e gestos desvalorizados. A atividade ritual falante é, aliás, essencial para construção da comunidade – a voz unânime, a recitação coletiva, o canto comunitário, são parte decisiva nesse processo de construção da comunhão. As comunidades crentes são formas de comunhão no gesto e na palavra. Por vezes, o silêncio e a palavra estão muito próximos. Na ação ritual, encontramos o rasto da oração em voz baixa, a «secreta». Curiosamente esta oração em voz baixa não terá tido sempre um grande prestígio, face à oração «altifalante». Ana, no I Livro de Samuel, reza com um leve bulir dos lábios, gesto que o sacerdote Eli não entende, pedindo que se afaste e vá curar a sua embriaguez (I Samuel 1, 13).

A palavra ganha uma particular força nos contextos de autoridade. Aliás, as tradições religiosas apresentam-se, recorrentemente, como um conjunto de processos de perpetuação de uma palavra fundadora originária (a Lei, a Revelação, o Mandamento, etc.) A palavra torna-se norma, fixa os limites da legitimidade, «faz crer», suscita o assentimento, torna-se território de identidades (fronteiras). Neste sentido, os guardiões do Templo não são os guardiões do silêncio – na feliz expressão do antropólogo David Le Breton. Nos seus estudos de sociedades sem Estado, Pierre Clastres descreve situações rituais em que os chefes da comunidade prolongam atos de fala de forma contínua, sem que ninguém lhes preste atenção. O chefe tem a missão de recitar as grandes narrativas da comunidade. Essa recitação não é uma palavra que vise a interlocução, é uma palavra consensual, indiscutível.

Nestas circunstâncias, o silêncio pode ser uma reserva face ao império da palavra, oferecendo um lugar à afirmação da individualidade, da experiência irrepetível. Talvez as formas mais corrosivas de dissidência não sejam as que usam a palavra contestatária, mas as correntes silenciosas – pensemos nas marchas silenciosas, onde o silêncio dá voz. O silêncio pode ser, afinal, uma «palavra de ordem». De uma forma geral, nos ambientes de forte regulação institucional, há um preconceito quanto à latitude de sentido que o silêncio pode assumir (para além do silêncio «rubricado»). Na minha experiência de etnografia em meio paroquial católico, observei com frequência que, sempre que os crentes pretendem abrir espaço à sua experiência pessoal nos ritos comunitários, o tempo do silêncio é um meio indispensável. Assim, o silêncio orante não é necessariamente imperturbabilidade. Enquanto «interioridade falante», pode ser muito ativo.

Quando os estilos celebrativos e os recursos rituais visam valorizar a possibilidade de acolhimento das diferenças, o silêncio é, invariavelmente, um recurso decisivo. Fabrice Blée, teólogo canadiano que estudou as atuais dinâmicas interreligiosas monásticas na Europa, nos EUA e na Ásia, descobriu aí os sinais de uma remodelação da espiritualidade do deserto: o deserto de silêncio e encontro consigo mesmo é agora o deserto do encontro com o outro diferente. Um lugar onde todos se podem despojar daquilo que separa, abrindo novas possibilidades para o encontro. O teólogo observou que este novo monaquismo valoriza muito o silêncio orante e ritual, enquanto experiência de acolhimento e reconhecimento. Dir-se-ia que o silêncio permite um consenso que o discurso tornaria difícil.

Algo de comparável se descobre em Taïzé. A sua mensagem planetária de recorte ético, o apelo à experiência de comunhão na diversidade étnica, nacional, linguística e espiritual, o jogo entre regra e livre expressão, dispersão e reunião, refletem-se de forma vincada no silêncio e na reiteração que ritmam o tempo ritual – são artes de fazer essa ponte entre o universal e o singular.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.