Severance: a distopia do banal

Mas é a importância da memória que Severance põe em destaque. Porque é a memória que nos torna humanos e capaz de nos redimir e até salvar o outro.

Permiti que comece por um truísmo: há muito que as séries televisivas evoluíram de tal forma que se instalaram naturalmente no nosso quotidiano. Isto deve-se a uma série de factores: argumentos de excelência, investimento na produção, variedade de temas, escolha de elenco rigorosa. Houve uma evolução tão rápida como notável, muito devida ao aparecimento de canais vocacionados para a criação destes produtos televisivos. O nível chegou a tal ponto que terá levado muitos críticos a apontarem as novas séries (aqui referimos sobretudo aquelas produzidas depois de 2OOO)  como uma espécie de nova literatura.

Exagero à parte, a subida de qualidade é óbvia e se a série televisiva já tinha o seu lugar na cultura popular neste momento é um dos seus principais vectores, fidelizando milhões de espectadores por todo o mundo e inclusivamente inspirando artigos e ensaios académicos. Séries hoje de culto como Os Sopranos, The Wire, Mad Men ou Guerra dos Tronos ajudaram a esbater uma alegada diferença entre alta e baixa cultura com narrativas cuidadas, densidade psicológica e complexidade dos personagens. Por outro lado as séries televisivas foram progredindo do mero entretenimento para o reflexo do nosso tempo, presente em todos os géneros, do drama à comédia e até ao universo dos super-heróis.

É esta fabulosa evolução – que não dispensa o cinema, outra arte maior – que vem então invadindo naturalmente as nossas conversas e os nossos dias. E não será por isso de estranhar que este texto tente chamar a atenção para mais um desses acontecimentos: chama-se Severance – Ruptura, numa tradução apressada para português – e é uma criação de Dan Erickson para a AppleTV+ e que estreou em 18 de Fevereiro deste ano. Como género, Severance é difícil de definir e por consequência limitar: para uns é uma comédia negra, para outros uma distopia também ela nada luminosa e à beira da ficção científica, um thriller psicológico ou ainda um drama humano. Muito provavelmente é um pouco de tudo isso e esse será um dos segredos da sua imensa atracção e sucesso.

Existem assim duas versões da mesma pessoa. Ao separar-se da sua memória pessoal, o individuo não é mais do que um autómato.

A premissa base da série é tão simples como brilhante: seguimos o percurso de um empregado de uma misteriosa empresa  – Lumon Industries – onde os trabalhadores são submetidos voluntariamente a um procedimento cirúrgico que irá separar as memórias que têm do trabalho das suas memórias pessoais – a tal ruptura a que o título da série alude. Enquanto estão na empresa, não têm qualquer recordação da família ou do mundo exterior e uma vez na rua apagam-se as memórias do trabalho. Existem assim duas versões da mesma pessoa. Ao separar-se da sua memória pessoal, o individuo não é mais do que um autómato.

A trama adensa-se quando um dos funcionários consegue superar essa ruptura e ficar novamente com a memória inteira, o que lhe traz uma visão completa do que faz no trabalho – e o que vê não é bom. Procura então a ajuda do seu melhor amigo que, por sua vez, não o reconhece como tal, para tentar que ele também recupere a percepção das coisas. E os dias vão ficando mais perigosos e surpreendentes.

Em termos visuais, Severance acentua a separação entre o mundo do trabalho  – planos simétricos, cromatismos tristes e assépticos – e o mundo pessoal, onde as cores e a visão é mais alargada. A realização de Ben Stiller – actor de comédia e autor – é acertada, seguindo com precisão os passos do protagonista interpretado por Adam Scott. O restante elenco é também de excelência, com destaque para Patricia Arquette e John Turturro.

Severance apresenta um mundo distante e impessoal (“Um aperto de mão está disponível sob pedido”, diz uma das personagens a outra) que contrasta com outro onde o humano ainda existe. Ao tratar de forma distópica o ambiente de escritório, Severance oferece a distopia do banal e até onde ela pode chegar. É um trunfo importante da série e um dos maiores estímulos para a seguir. Mas é a importância da memória que Severance põe em destaque. Porque é a memória que nos torna humanos e capaz de nos redimir e até salvar o outro.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.