Será que a corrupção nos choca assim tanto?

Se nos dispusermos a rezar com o Papa Francisco pelo combate à corrupção, valeria a pena fazer também um bom exame de consciência. Importa refletir sobre a forma como decidimos e como colaboramos uns com os outros, sobre o nosso modo de proceder no seio das instituições onde trabalhamos e desempenhamos funções.

Neste mês de Fevereiro, o Apostolado da Oração, promovido pelo Papa, apela ao combate contra a corrupção. “Não à corrupção!”, eis a intenção universal pela qual o Papa nos pede que rezemos, especificando ainda: “para que aqueles que têm poder material, político ou espiritual não se deixem dominar pela corrupção.” Mas, quem possui este poder? Serão apenas os políticos e os grandes empresários, cujo desprezo pelo bem comum tantas vezes nos escandaliza?

Recentemente, têm vindo a público alguns escândalos de corrupção no tecido social português. O eco de uma crescente indignação fez-se sentir em vários sectores da sociedade.

A intenção de oração do Papa não se fica, contudo, pelo sentimento de indignação. Não se trata apenas de nos revoltarmos contra a injustiça dos atos perpetrados por quem tem um poder que deve estar ao serviço de todos. Nem se trata apenas de lamentar os danos que a corrupção acarreta para o desenvolvimento económico de um país e do seu Bem Comum. Trata-se, sobretudo, de perceber até que ponto também nós nos deixamos contaminar pelo espírito da corrupção. Rezar pelo fim da corrupção deve levar-nos, enquanto cristãos, a fazer um exame de consciência diante de Deus e dos Seus critérios.

A avaliar pelas opiniões veiculadas pelos órgãos de comunicação social, é interessante notar como é fácil ser dominado por fortes moralismos quando os escândalos se tornam públicos: o dinheiro mal gasto, as pessoas que são injustamente privilegiadas em detrimento de outras, o progresso do país que fica comprometido…

A indignação compreende-se, portanto, sobretudo num país, como o nosso, que, em 2016, viu a sua posição descer no ranking relativo aos níveis de corrupção no sector público, um ranking elaborado pela Transparency International. Mas, por mais justa que seja, esta indignação corre o risco de se reduzir a um sentimento efémero, que facilmente se desvanece com o passar do tempo. As novidades do mundo jornalístico, que sempre palpitam no espaço público, ajudam-nos a esquecer a revolta e, assim, morre o sentimento de indignação.

Além disso, mesmo durante o clímax da indignação pública, só se manifestam os que não conhecem os visados. Porque, em geral, todos os envolvidos consideram que, no fundo, nunca houve propriamente corrupção. Afinal, trata-se de pessoas competentes, que trabalham, que têm um curriculum mais que suficiente para os cargos desempenhados e que defendem os valores republicanos da igualdade entre cidadãos. “É legal”, dizem-nos. E, assim, abre-se a porta para a desculpa generalizada do “sistema”: não as pessoas em concreto, mas o sistema, ou as instituições, em abstrato. As instituições é que são corruptas, e o indivíduo, coitado, tem de tolerar estas estruturas nefastas que o dominam. Assim, indignação e desresponsabilizacão caminham a par, e a revolta que sentimos revela-se impotente para nos mudar enquanto pessoas e enquanto sociedade.

Talvez seja por isso mesmo que o Papa nos pede, a cada um de nós, para rezarmos pelo combate à corrupção. Nessa oração, somos chamados a refletir até que ponto não seremos nós próprios detentores do poder de que nos fala o Papa. Nos nossos hábitos, nas rotinas do dia a dia, nas decisões que temos de tomar no seio das instituições onde trabalhamos, será que podemos ser aí influenciados pelo espírito da corrupção? Será que agimos segundo o mesmo modo de proceder dos agentes corruptos que nos escandalizam?

Se é verdade que a indignação estala quando se descobre um ato corrupto de enorme dimensão, talvez também exista entre nós uma cultura enraizada de pequenas infrações, quase inocentes, que se tendem a desculpar: fugir, na medida do possível, aos impostos, escondendo o que se recebe e o que se consome;  beneficiar indevidamente amigos ou conhecidos, qual prática comum, ternamente apelidada de “cunha”; copiar nos exames; arranjar forma de “dar um jeitinho” para receber ou dar favores; procurar egoisticamente as soluções mais convenientes; e, no fim, encarar tudo isso como se de “algo normal” se tratasse porque, afinal, ninguém saiu prejudicado (o que não é verdade, obviamente).

Se nos dispusermos a rezar pelo combate à corrupção, valeria a pena fazer também este exame de consciência. Podemos, então, refletir sobre a forma como decidimos e como colaboramos uns com os outros, sobre o nosso modo de proceder no seio das instituições onde trabalhamos e desempenhamos funções.

Etimologicamente, o termo latino corruptio, do qual provém a nossa palavra “corrupção” significa “deterioração”, “processo de corromper”, “de se degradar”: um significado que facilmente se aplica num sentido moral. Se queremos, portanto, ser mais íntegros, não nos deixando corromper, devemos zelar por critérios que protejam as nossas decisões da inevitável falta de impacialidade associada às nossas relações familiares e de amizade, cuidando da transparência das nossas instituições e da sua abertura a quem se situa para além da tribo ou do clã de que fazemos parte – refiro-me ao habitual “grupinho de amigos”. Se o fizermos, a indignação e a repulsa que sentimos em relação aos corruptos serão justificadas.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.