Será a Covid exceção para tudo?

É urgente pensarmos criticamente sobre o que se está a passar no espaço público. Precisamos de perceber qual o impacto da pandemia na revitalização ou não de lógicas exclusivistas, protecionistas e autoritárias.

No passado mês de abril, o Presidente da Hungria, Viktor Orbán, já conhecido pelas suas posições contra a democracia liberal, declarou que, no contexto das ações de proteção contra o coronavírus, o país seria governado por decreto, podendo o próprio por si mesmo suspender toda e qualquer lei, criar novas imposições legais e tudo isto por tempo indeterminado. Por seu lado, a Coreia do Sul decidiu publicar online o movimento de diversas pessoas, algumas das quais sem qualquer confirmação de contágio, que tem vindo a ser vigiado através de aplicações de GPS no telemóvel, registos do uso do cartão de crédito e videovigilância. Outros países adotaram modelos semelhantes de monotorização do movimento das pessoas através do recurso a diferentes aplicações tecnológicas.

Entre janeiro e março, o Serviço de Imigração e Fronteiras dos Estados Unidos anunciou que, nos termos da proclamação Presidencial de Donald Trump, a entrada de estrangeiros em território nacional vindos da China, Irão, espaço Schengen, incluindo Reino Unido e a Irlanda e, mais recentemente, do Brasil seria banida. Esta medida tem vindo a afetar milhares de imigrantes que se vêm obrigados a ficar no país, sob pena de não poderem regressar e perderem os seus postos de trabalho. Outros, que se encontravam fora dos EUA, aquando da entrada em vigor desta norma, esperam com angústia e sem qualquer garantia de sucesso pela possibilidade de um regresso. Há poucos dias, o mesmo Serviço anunciou que os estudantes internacionais terão de abandonar o país caso a sua universidade opte pelo regime de ensino online, o que prejudicará a vida de mais de cerca de 200 mil estudantes. Todavia, e apesar do recurso a todas estas medidas de caráter restritivo e coercivo, o número de infetados não só não tem diminuído nos EUA mas, pelo contrário, atingiu valores recorde nos últimos dias.

Em Portugal, e a um nível mais regional, vemos determinados delegados de saúde pública locais a excederem as suas competências, proibindo, por exemplo, a realização de celebrações eucarísticas ao ar livre, à revelia das diretivas da Conferência Episcopal Portuguesa definidas em conjunto com a Direção Geral da Saúde.

Perante isto, resta perguntar: serão todas estas medidas tão limitativas da liberdade dos cidadãos proporcionais ao intuito de evitar a propagação do vírus? Terão um período de vigência determinado? Ou durarão mais do que o propósito para o qual foram criadas? Serão de facto uma exceção?

Dito de outro modo, por causa do medo, algumas vezes justificado, outras vezes instigado, as pessoas acabam por tolerar tudo, e são levadas a acreditar que só pela força e autoridade se poderá resolver o problema e responder à ameaça.

O recurso ao estado de exceção constitui uma possibilidade dentro de um Estado de Direito. Todavia, o seu uso recorrente e generalizado põe em causa o seu caráter de excecionalidade, ao mesmo tempo que tende a conduzir a uma aceitação, muitas vezes acrítica, das restrições aos direitos, liberdades e garantias motivada por razões de ordem e segurança. Dito de outro modo, por causa do medo, algumas vezes justificado, outras vezes instigado, as pessoas acabam por tolerar tudo, e são levadas a acreditar que só pela força e autoridade se poderá resolver o problema e responder à ameaça.

Decorridos quatro meses desde que a Organização Mundial de Saúde declarou a existência de uma pandemia global, sabemos agora mais acerca da propagação e efeitos do coronavírus. Ao mesmo tempo, estamos cada vez mais conscientes do impacto presente e futuro na vida privada das pessoas e ao nível da vida pública e política. Portanto, importa repensar a pertinência destas medidas de controlo de natureza supostamente excecional.

As medidas restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos tomadas no âmbito do estado de exceção são entendidas e avaliadas dentro do cálculo meio-fim, no qual o critério de proporcionalidade assume um papel central. O raciocínio é simples quando aplicado ao contexto atual: é lícito ‘controlar’ a vida das pessoas, para assim conter a pandemia. Todavia, esta lógica – que é a lógica da instrumentalidade – pode tornar-se perigosa, sobretudo em tempos de incerteza como os que vivemos. De acordo com Hannah Arendt, em The Human Condition, nós fazemos ainda parte da geração que conheceu em profundidade as consequências mortíferas e atrozes inerentes a uma linha de pensamento que considera que todos os meios são permitidos, desde que eficientes para obter o fim desejado. A este propósito, bastaria pensar no que se passou em diversos regimes totalitários ou durante a Segunda Guerra Mundial. Numa lógica em que impera a instrumentalidade, em que tudo é visto como um meio em direção a um fim reconhecido, a realidade e os nossos atos vão perdendo o significado e o peso que têm em si mesmo. Por isso, torna-se muito mais difícil evitar que alguém possa usar indiscriminadamente todo e qualquer meio para atingir uma finalidade reconhecida como boa por todos. Mas serão todos os meios justificados e permitidos? Quais os limites?  E, acima tudo, quem o decide?

Numa lógica em que impera a instrumentalidade, em que tudo é visto como um meio em direção a um fim reconhecido, a realidade e os nossos atos vão perdendo o significado e o peso que têm em si mesmo.

O poder de decisão durante o estado de exceção cabe aos órgãos de soberania. Este é, sem dúvida, o maior poder dado ao soberano: o poder de suspender a ‘normalidade’ do dia-a-dia das pessoas, regulado e gerido dentro dos limites legais. No entanto, o poder soberano é ampliado e solidificado, não por escolha dos cidadãos, mas pela suspensão das liberdades e garantias desses mesmos cidadãos. Deste modo, os soberanos passam isoladamente a poder usar dos meios que entenderem necessários para atingir o fim almejado, ainda que esta suspensão seja legitimada pela proteção de um bem maior. O critério da proporcionalidade é fundamental para avaliação dos meios. Todavia, não é suficiente porque a proporcionalidade não é sempre um critério objetivo e claro. E como temos vindo ver, o entendimento do que é ou não adequado varia de contexto para contexto, ou melhor dizendo, de soberano para soberano. É fácil perceber o perigo para a democracia, por isso, não podemos olhar de ânimo leve para recurso repetido destas medidas excecionais.

O tempo da pandemia tem servido de desculpa para muita coisa, mas também é bem verdade que permitiu levantar o véu que cobre a sociedade hodierna e deixar a descoberto a realidade em que de facto vivemos, onde gestos de solidariedade e comunhão se manifestam, onde as melhorias e desenvolvimento aos níveis tecnológico e científico nos surpreendem, mas também onde as feridas, as fraturas, as desigualdades do mundo inerentes ao modelo económico ao qual estamos agarrados se desmascaram e revelam. Nos últimos meses, o lado mais escuro desta nossa sociedade tem-se destacado. E são novamente os mais frágeis, os mais pobres e marginalizados os mais afetados não só pela propagação do vírus, mas também pela dificuldade de acesso a serviços de educação e saúde de qualidade, pela perda de empregos, pela ameaça crescente de precariedade. A par destas desigualdades, crescem, e certamente não por acaso, as manifestações de autoritarismo.

Num artigo publicado recentemente no Financial Times, Arundhati Roy comparava a pandemia a um portal: “Podemos optar por atravessá-lo, arrastando as carcaças do nosso preconceito e ódio, da nossa avareza, das nossas contas bancárias e das nossas ideias moribundas, dos nossos rios mortos e dos céus esfumaçados atrás de nós. Ou podemos caminhar leves, com pouca bagagem, prontos para imaginar outro mundo.” Olhando para o que se passa no mundo à nossa volta, qual terá sido o caminho escolhido pelo diferentes líderes políticos e por cada um de nós?

É urgente pensarmos criticamente sobre o que se está a passar no espaço público. Precisamos de compreender como a pandemia está a afetar a reorganização dos países e das alianças transnacionais, precisamos de perceber qual o impacto na revitalização ou não de lógicas exclusivistas, protecionistas e autoritárias. E por isso importa perguntarmos: estamos a sair disto mais unidos ou mais isolados e preocupados com os próprios interesses? Estamos verdadeiramente a cuidar dos mais vulneráveis e marginalizados? Que mundo novo está a emergir por detrás das nossas ações políticas? Com o decorrer do tempo, convenço-me cada vez mais que a resposta a esta crise passará não tanto pelo uso (e abuso) de medidas de caráter autoritário que assentam numa lógica de comando-obediência, mas antes pela capacidade de envolvermos os diferentes poderes do espaço público e privado (e não só o poder soberano) em ações concertadas que assentam na participação e interação de todos os cidadãos.

 

Foto de: Adli Wahid – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.