Nota prévia
Ainda que a invasão russa da Ucrânia já dure há mais de seis semanas, a flagrante injustiça do que está a suceder ao povo ucraniano, a barbárie da guerra e a crise de refugiados continuam a reclamar a nossa atenção como nenhum outro evento ou circunstância nacional ou internacional. O que aqui se propõe quer ser uma ajuda na luta contra um possível cansaço mediático em nome da obediência ao exigente imperativo da compaixão pelos que sofrem.
Nos inícios do período em que vivi na Terra Santa, muito possivelmente no meu primeiro ano em Jerusalém, tive a graça de participar numa cerimónia singular que teve lugar – espante-se o leitor! – num dos telhados do bairro judeu da cidade velha de Jerusalém. Por intermédio da Universidade, acabei, eu e mais três colegas norte-americanos, a celebrar o “Tish’a B’Av” com um grupo relativamente jovem de judeus ortodoxos. O “Tish’a B’Av” – expressão que significa tão simplesmente “o nono [dia do mês] de Av” (o quinto mês do calendário hebraico clássico, que coincide com os meses de julho-agosto no calendário gregoriano) – é o dia anual de jejum no qual a comunidade judaica recorda e lamenta, entre outras tantas trágicas efemérides, as destruições tanto do Primeiro como do Segundo Templo de Jerusalém, em 586 a.C. e 70 d.C., respetivamente. Ao centro da celebração está a leitura integral do livro das Lamentações, um livro bíblico tradicionalmente atribuído ao profeta Jeremias no qual se descreve e lamenta a calamidade que se abateu sobre Jerusalém, o Templo e o povo de Israel em 586 a.C.. Naquela noite de Verão, sobre os telhados da cidade e com os olhos postos no que é hoje a esplanada das mesquitas, as imagens e a força poética das Lamentações de Jeremias transportaram-me ao coração da desgraça e despertaram em mim um fascínio e uma reverência por esse género de oração tão antigo e tão esquecido: a lamentação.
Pessoalmente e durante anos, associei as palavras lamentação e lamento às performances, a mais das vezes trágico-cómicas, das carpideiras dos filmes e dos livros. O choro e os gritos de quem emprestava cor e som ao silêncio pálido da família enlutada pareciam-me espetáculo grotesco e quase infame. Experiências como aquela, sobre os telhados de Jerusalém, deram-me novo alento para redescobrir esta arte espiritual das palavras de desolação, das lágrimas derramadas em nome próprio e alheio, da lancinante pergunta “Até quando…?”.
Neste assunto, como em tantos outros, o testemunho bíblico da fé do povo de Israel oferece-nos sendas alternativas. Para nós, herdeiros de muitos séculos de tradição cristã, gestos como o jejum ou a abstinência têm, antes de mais, um caráter penitencial: são sinais exteriores do nosso desejo de conversão e instrumentos eficazes desse movimento de regresso a Deus e à vida que nasce d’Ele. Esta perceção está profundamente enraizada nas Escrituras de Israel (ou Antigo Testamento), mas não é a única nem, muito provavelmente, a mais antiga resposta ao quê e porquê daqueles gestos. Nas culturas do Antigo Oriente Próximo, e também na cultura religiosa do Israel Antigo, o jejum e a lamentação eram as duas faces – física e verbal – de um grito de socorro, que se erguia diante dos outros e de Deus sob forma de protesto. Talvez nos pareça contraintuitivo e até chocante, mas o jejum e a lamentação pela desgraças sofridas ou recordadas eram, na origem, uma forma de “forçar a mão” dos outros e, sobretudo, de Deus: pelo jejum (pela renúncia a alimentar-se), o crente colocava-se fisicamente numa situação de “não-vida” (de morte simbólica), à qual a lamentação dava voz e (con)texto, com o intuito de protestar o abandono sentido e reclamar a salvação esperada. Num certo sentido, o jejum (e a lamentação) era(m) uma espécie de “greve de fome” às portas tanto da terra como do céu.
Para quem crê, este é também o tempo da oração mais intensa. E, é esse o sentido deste artigo, talvez possamos redescobrir no jejum e, sobretudo, na lamentação essa forma adequada de comungar na desgraça do povo ucraniano e de todos os povos e pessoas que sofrem e de erguer com eles, por eles e como eles um grito feito de pergunta e esperança.
A invasão russa da Ucrânia está a deixar um indescritível rastro de destruição num país e num povo que se vê injustamente atacado e que apenas deseja viver em paz e democracia. Todos estamos a ser afetados mais ou menos diretamente pela guerra e as suas consequências, mas ninguém sofre como as vítimas imediatas deste conflito e de todos os conflitos e guerras que continuam a assolar o mundo e a multiplicar a dor. Impõe-se a todos o exigente dever de fazer o possível para terminar a guerra e ajudar quem sofre e, felizmente, não têm faltado os gestos de generosidade. Para quem crê, este é também o tempo da oração mais intensa. E, é esse o sentido deste artigo, talvez possamos redescobrir no jejum e, sobretudo, na lamentação essa forma adequada de comungar na desgraça do povo ucraniano e de todos os povos e pessoas que sofrem e de erguer com eles, por eles e como eles um grito feito de pergunta e esperança. Não se trata evidentemente de “falsificar” a dor que não sentimos ou as lágrimas que não nos correm na cara, mas de exercitar e cumprir, com a ajuda de uma prática milenar, a compaixão a que estamos chamados.
Estamos às portas da Semana Santa, que começa já este domingo, com a entrada de Jesus em Jerusalém, onde vai entregar a vida pela salvação do mundo. Na tradição litúrgica da Igreja, a celebração do mistério da morte e ressurreição de Cristo incluía, até à mais recente reforma, a leitura integral do livro das Lamentações nos três dias que precediam o domingo de Páscoa, durante o chamado “Ofício de trevas”. Esses eram também dias de jejum e/ou de abstinência. Sem abraçar “saudosismos litúrgicos”, talvez possamos repropor-nos este exercício de ler (ou escutar: veja-se o vídeo em baixo) este livro num dos dias desta semana maior e reencontrar nas palavras de Jeremias a oração-apelo-grito-protesto que coloca o sofrimento da Ucrânia e a dor e sofrimento de todos os homens e mulheres, presentes, passados e futuros, nos lábios e no coração de quem “reclama” de Deus, com confiança, a paz, a justiça e a vida.
https://www.youtube.com/watch?v=hf7xfEe7jlI
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.