Sem emenda

Ter de explicar que debater livremente propostas com perspectivas ideológicas distintas é um dos traços definidores da democracia é quase embaraçoso. Não é preciso restringir a liberdade por decreto. Neste país a servidão é voluntária.

“Those who would give up essential Liberty, to purchase a little temporary Safety, deserve neither Liberty nor Safety”

Benjamin Franklin

Portugal estima pouco a liberdade. Em parte é possível que este desamor tenha contribuído para a sustentação de uma ditadura por mais de quatro décadas. E o regime que terminou em 1974, beneficiando ou não dessa pouca estima, durou mais do que o suficiente para normalizar a falta de liberdade. A caminho de completar meio século de democracia, por vezes surge a dúvida sobre se o país – o povo e as suas instituições – já se emanciparam por completo. Duvido. Causa ou consequência, uma coisa parece bastante evidente: há gente em lugares remotos a lutar pela liberdade, por aqui, na melhor das hipóteses, não se sabe o que fazer com ela.

Perante o que a imprensa estrangeira apelidava de “milagre português”, referindo-se ao aparente sucesso no cumprimento do confinamento (esse termo grotesco), o Primeiro-Ministro (PM) veio, impante, louvar o inexcedível civismo nacional. Antes mesmo de o estado de emergência assumir forma de lei, já os exemplares cidadãos haviam recolhido a casa com os respectivos infantes, que entretanto retiraram da escola, para assim cumprirem a sua reclusão voluntária. Considerando os antecedentes nacionais, suspeito que este voluntarismo deva mais ao medo e a um certo desdém pela liberdade do que ao civismo. Não foi preciso decretar a limitação das liberdades, os portugueses abdicaram delas de boa vontade.

A suspensão generalizada da economia gerou pouco mais de nenhumas receitas para o Estado o que, aliado à distribuição de apoios às empresas e famílias, via Segurança Social, conduziu o país a um gargantuesco défice. Um regresso a um passado demasiado recente. Mas desta vez a aflição foi mais democrática: a pandemia colocou em desordem e caos as finanças da maior parte dos países europeus. Convencidos os apodados frugais da necessidade de mutualizar a dívida, eis que de repente há milhares de milhões de euros destinados a Portugal. Uns a fundo perdido – leia-se: “é gastar sem ter de devolver” – outros emprestados a juros muito baixos, desde os primeiros anos pós-adesão que não havia tal enxurrada de dinheiro.

Que esse caminho implica também ele uma transferência de liberdade e soberania dos Estados – e claro está dos indivíduos – para uma entidade supra-estatal não parece incomodar alma alguma.

Mas muito fica por contar no meio deste processo. Não se conhece em detalhe o que é exigido a Portugal como contrapartida pelo recebimento dos fundos europeus. Para além de umas declarações vagas quanto à imposição de reformas, da aplicação dos fundos em certas áreas como a economia digital e de uma fiscalização (mútua) mais apertada quanto aos destinos do dinheiro, ninguém parece conhecer as “letras pequenas” do acordo. Talvez as verdadeiras contrapartidas ainda não tenham sido realmente negociadas. De resto, embriagados com tanto dinheiro, não parece haver grande vontade de perguntar ou investigar. O que fica é de facto uma quase institucionalização do desejo francês de um orçamento europeu e, claro está, mais um passo para o inexorável aprofundamento do “projecto europeu”.

De cerviz curvada e mão estendida, abdica-se de mais um pouco de liberdade até não restar nenhuma. Poderia ao menos haver um módico de constrangimento e circunspeção. Afinal de contas, estamos a receber dinheiro de outros e a pedir emprestado.

Que esse caminho implica também ele uma transferência de liberdade e soberania dos Estados – e claro está dos indivíduos – para uma entidade supra-estatal não parece incomodar alma alguma. O facto de ninguém ter sido convocado a votar para isto, também não causa sobressaltos. De cerviz curvada e mão estendida, abdica-se de mais um pouco de liberdade até não restar nenhuma. Poderia ao menos haver um módico de constrangimento e circunspeção. Afinal de contas, estamos a receber dinheiro de outros e a pedir emprestado. Ao invés, há júbilo. Vergonha, é que não.

Entretanto, na frente doméstica, o principal partido da oposição decidiu propor à Assembleia da República (AR) o fim dos debates quinzenais com a presença do PM. Certamente com o estimável propósito de evitar a sempre maçadora tarefa do chefe do Governo responder às questões dos deputados e prestar contas ao Parlamento. A manobra deveria constar de um manual de hara-kiri: o partido que mais beneficia com o actual regimento parlamentar – porquanto permite-lhe em cada quinzena confrontar o Governo e o PM e escrutinar o trabalho destes – propõe-se renunciar a este direito. Poderia ser cómico – que é – mas é ao mesmo tempo trágico na exacta medida em que desprestigia o Parlamento e o papel dos deputados à AR.

Por mais sofisticados que sejam os argumentos a favor desta proposta – e na verdade se os há, escapam-me –, não escondem a ideia muito básica que está na sua origem: os deputados limitam-se a “falar e gritar” uns com os outros, debitam discursos monótonos e inconsequentes, além de que interrompem o trabalho do PM. Ter de explicar que debater livremente ideias e propostas assentes em perspectivas ideológicas distintas é um dos traços definidores da democracia é quase embaraçoso. Ter de escrever que o PM e o Governo estão constitucionalmente obrigados a prestar contas à AR e que esse é também o “trabalho” do PM é não só embaraçoso como inquietante.

Interessa-me pouco se Rui Rio faz o que faz por taticismo político: abafando os pequenos partidos, mostrando-se cooperante com o Governo e disponível para uma solução de bloco central. Ou se o faz por acreditar que no fundo a democracia parlamentar pode ser abreviada, falando-se menos e fazendo mais – onde é que já ouvimos isto…

Mas já me interessa o indecente comportamento dos deputados do PS e do PSD – com algumas excepções que votaram contra ou se abstiveram – que aprovaram esta proposta. Além de diminuírem voluntariamente a importância das suas funções e, consequentemente, o mandato que receberam dos portugueses, sem que a estes fosse dado a conhecer em programa eleitoral tal intenção, contribuíram para tornar a Democracia mais pequenina – o que é sempre uma forma de diminuir a liberdade. E em troca de quê?

Não é preciso restringir a liberdade por decreto. Neste país, a servidão é voluntária.

 

Nota: o autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.