Vivemos numa época de múltiplos questionamentos existenciais, marcados por um forte sentido globalizante e tendencialmente cosmopolita, que, não raras vezes, tende a afastar-nos das nossas origens! E não falta, até, quem as renegue!
Nasci numa terra beirã, num dia frio de inverno, bem longe das minhas raízes, circunstância ditada pela atividade profissional dos meus pais. A distância, as sinuosidades das estradas, a ronceirice do comboio tornavam morosa e desesperante a viagem até ao Minho e a muitos outros lugares. Apesar disso, o meu pai fez questão de me registar “na sua terra”, que, assim, passou a ser minha também. Aí estavam as minhas raízes, o meu passado, os “meus mortos” e, por isso, no Minho tinha de ser registada. No Minho me criei e fiz dele a paisagem da minha vida. Nem sempre tivemos uma relação fácil e nem sempre compreendi o seu significado, mas a idade ajudou a resolver os equívocos e permitiu que me reconciliasse com ele.
No Minho, cresci a contemplar as rugas da minha avó, sulcadas por uma vida de trabalho, a acariciar os seus cabelos brancos, que sinalizavam o avanço da idade, e a espantar-me com o seu vocabulário, carregado de expressões que traduziam uma sabedoria feita da vida e do mundo que eu ainda não conhecia. Fiz-me mulher a admirar a bondade do meu avô, as suas palavras meigas e a sua expressão carinhosa, mesmo em momentos de dificuldade que eu ainda não pressentia. Cresci a vê-los juntos e a tê-los como referência de valores e de afetos, mas também os vi definhar. Primeiro o meu avô, que, paulatinamente, foi perdendo a sua vivacidade, a sua expressividade, mas sem nunca largar a mão orientadora da minha avó. Ela era a mulher da casa! Lembro-me de o ver sentado debaixo de uma oliveira, já muito debilitado, enquanto a minha avó, sempre ao seu lado, sem o perder de vista, ia trabalhando a seu modo. Recordo o primeiro Natal em que assisti à sua separação, ditada pela ida do meu avô para o hospital. A minha avó, com o rosto encostado à janela, despediu-se com um aceno e ficou à espera do seu regresso. Ele voltou, mas, como se temia, a separação final acabou por acontecer! A vida mudou, o Minho perdeu parte da sua cor e a minha avó resistiu mais alguns anos. Apesar de ter visto partir outras pessoas, a minha relação com a morte e a maneira como comecei a perspetivá-la e a encaro hoje resultam do modo como vivenciei a morte dos meus avós, como segui e apreciei as suas vidas.
Estas memórias servem, afinal, de pretexto para refletir sobre como a morte é considerada nos tempos hodiernos. Os meus avós tinham um desejo: morrer em casa, na sua casa! Queriam uma morte acompanhada, aconchegada pelo afeto que partilharam com os filhos e netos ao longo das suas vidas, e pelas paredes, cravejadas de memórias, da sua casa.
Hoje, raramente se morre em casa e também se evita falar na última morada. Assiste-se, passe o paradoxo, a uma morte invisível e anónima, tão bem descrita por Philippe Airès na sua obra sobre a história da morte no ocidente. Morre-se no vazio e na solidão do hospital, ao contrário dos tempos de antanho, quando se desejava que a morte fosse pública e sentida. Não se quer ver o outro partir… Hoje, também não se pode chorar a morte, escondem-se os sentimentos. Os choros devem ser evitados e manifestações de dor são confundidas com falta de controlo. O ideal será medicar-se!… A sociedade lida mal com a presença da morte: teme-a, rejeita-a, tenta silenciá-la. Por isso, tenta escondê-la. No passado, nada era mais receado do que uma morte inesperada.
Tal como sucede com o comum dos mortais, o espectro da morte também me assusta. No entanto, sei para onde quero ir, por mais voltas que dê e por mais partidas que o destino me possa pregar: para a “terra dos afetos” e voltar a sentir o afago da mão do meu avô e o sorriso quente da minha avó.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.