Sei o que queres ser

O negócio de venda de perfis depende por tudo isto de uma visão estreita do que é uma pessoa. Para o Facebook e para empresas como a Cambridge Analytica não existem realmente pessoas, mas hábitos e comportamentos.

Uma empresa de dados pomposamente chamada Cambridge Analytica terá usado ilegalmente a informação de 50 milhões de utilizadores do Facebook para influenciar o voto nas eleições presidenciais norte-americanas em benefício de Donald Trump.

Aparentemente, a partir dos dados reunidos pelo Facebook, com a colaboração activa dos utilizadores, é possível criar mecanismos para influenciar a opinião e o sentido de voto dos eleitores. Como?, pergunta qualquer pessoa saudavelmente céptica. Mostrando-lhe aquilo que quer ver ou indo ao encontro das suas expectativas. E como conhecemos as expectativas destes eleitores? Partindo do pressuposto de que numa rede social ninguém mente, as pessoas respondem com verdade às perguntas tontas que o Facebook coloca e que não passa pela cabeça de ninguém fazer um like numa página da qual não gosta. O perfil não é feito por especialistas, como nos filmes em que há criminosos por descobrir, mas pelos próprios utilizadores, que vão mostrando os seus hábitos na rede social, tais como as horas em que estão mais presentes, os locais onde se encontram, as pessoas com quem se relacionam.

As informações que o Facebook tem sobre os seus utilizadores são mais sofisticadas e exaustivas do que as da Amazon ou até do Google, que nos propõem a compra de livros “parecidos”, sob a fórmula “se gostou de ler x, então gostará de ler z”, ou que nos perseguem durante dias a fio com anúncios invasivos sobre temas que acabámos de pesquisar. O YouTube indica na barra ao lado canções de bandas ou compositores similares aos que escolhemos ouvir inicialmente. O primeiro passo é nosso, os restantes pertencem a um mecanismo que nos fornece mais do mesmo, que “pensa” que nos conhece de algum lado, tira conclusões por vezes precipitadas, mas que sobretudo nos mostra coisas parecidas com aquela que procurámos com variantes mínimas até pesquisarmos outra diferente. E o ciclo repete-se com mais sugestões.

Exibir reações como a tristeza ou a ira através de emojis, uma possibilidade que o Facebook passou a oferecer desde Fevereiro de 2016, meses antes da eleição de Trump, pode ter sido usado para definir melhor certos perfis. Gostava de saber, por curiosidade, quantos daqueles 50 milhões de utilizadores eram mais efusivos a mostrar ira e tristeza e em relação a quê. O discurso xenófobo e sexista de Trump congrega aquelas pessoas que estão com o bonequinho da ira pronto sempre que se fala de mexicanos ou negros ou feministas. Imaginemos que esses emoji são reações a fake news, que são populares porque são notícias que confirmam ideias erradas mas feitas, e que confortam na dissimulação. Nestes casos, é possível chegar a estas pessoas, que não se distinguem dos seus perfis. Porém, não é possível manipular quem pensa pela própria cabeça, quem questiona notícias, quem recusa ser tratado como um ser sem vida, sem dúvidas nem contradições. As fake news, consideradas “satânicas” pelo Papa Francisco, vão ao encontro do que muitos querem ver.

O negócio de venda de perfis depende por tudo isto de uma visão estreita do que é uma pessoa. Para o Facebook e para empresas como a Cambridge Analytica não existem realmente pessoas, mas hábitos e comportamentos. As motivações de cada um, mesmo numa rede social, escapam, no entanto, à classificação. Pensando bem, não me lembro de ter comprado um livro recomendado pela Amazon na sequência de ter comprado outro do mesmo autor. Somos também o que foge ao perfil, que não passa ele mesmo de uma forma de controlo sobre o que damos a conhecer. Mas que perfil é esse se nós próprios nos enganamos, dizemos que gostamos de alguma coisa quando afinal estamos só a agradecer? Será uma projecção, uma ficção, uma mentira? Acontece que estamos vivos, com todo o mistério que isso implica. É fácil manipular um perfil (e um tonto), mas é difícil (e demora) influenciar uma pessoa.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.