Robles: o último pecador

Ao analisar todos os contornos da história de Robles concluo que, a existir, o seu erro não seja muito diferente da atitude e das palavras agressivas e ofensivas que tenho ouvido.

Em 2002 vi um filme que apreciei bastante: Minority Report. É um filme de ficção científica protagonizado por Tom Cruise e dirigido por Steven Spielberg. O enredo baseia-se numa obra literária de Philip K. Dick. A história passa-se no futuro, em Washington DC, onde existe um Departamento Especializado da Polícia que se dedica ao “Pré-Crime”. Este Departamento tem como missão deter criminosos com base em previsões fornecidas por três videntes chamados “precogs”. Ou seja, os potenciais assassinos são detidos antes sequer de cometerem os crimes a que estão predestinados.

A obra literária de Philip K. Dick coloca em confronto os princípios do livre arbítrio e do determinismo. Nesse mundo de ficção científica em que as intenções determinam o futuro, não há espaço para a compaixão, o arrependimento ou a redenção.

Minority Report foi um dos filmes mais bem avaliados de 2002. Recebeu elogios em inúmeras áreas mas ganhou algumas críticas pelo seu final que foi considerado por muitos como incompatível com o tom do resto do filme. A história termina com a conclusão de que o determinismo é redutor, injusto e limitativo e que não funciona numa perspectiva de sociedade.

Terá sido por causa deste filme que ao ler as manchetes dos jornais da semana passada tive uma sensação de dejá vu. Lia-se na primeira página do Jornal “O Económico” de quinta-feira (26 julho): “Vereador do Bloco ganha milhões com prédio em Alfama”. Em causa estaria a venda de um imóvel adquirido por Ricardo Robles e pela irmã em 2014, e posto à venda em 2017. Ricardo Robles desmentiu a afirmação do dito jornal poucas horas depois através de uma conferência de imprensa em que expôs até os pormenores mais pessoais da sua vida familiar.

Multiplicaram-se os insultos, as acusações, e a demagogia nas redes sociais, com base numa não questão. Afinal Ricardo Robles nunca chegou a ganhar nenhum tostão com a suposta venda. Afinal o imóvel nunca foi, sequer, vendido. Portanto, a menos que estejamos a entrar numa sociedade à moda da do “Minority Report”, diria que Ricardo Robles poderá ser acusado, no máximo, de incoerência.

O linchamento a que Ricardo Robles tem sido exposto nas redes sociais deve alertar-nos para o perigo de tomarmos parte em julgamentos públicos, movidos pela irracionalidade do “espírito de grupo”, muitas vezes sem termos sequer refletido e analisado devidamente todos os factos alusivos àquilo que comentamos. Quantos de nós nos perguntamos “Este post fará mais bem ou mal?” ou “Este comentário é movido pelo amor e compaixão ou pela inveja e pelo ódio?”

Bem mais graves são as dezenas de processos crime envolvendo políticos, líderes de bancos e de grandes grupos económicos como suspeitos e arguidos. E  desses escândalos praticamente nenhuma instituição, partido e nem mesmo a Igreja fica de fora. Muitos desses casos prescrevem, deixando impunes os envolvidos. E disso? Quem fala nas redes sociais?

Francisco Goiana da Silva

Bem mais graves são as dezenas de processos crime envolvendo políticos, líderes de bancos e de grandes grupos económicos como suspeitos e arguidos. E desses escândalos praticamente nenhuma instituição, partido, e nem mesmo a Igreja, fica de fora. Muitos desses casos prescrevem, deixando impunes os envolvidos. E disso? Quem fala nas redes sociais?

Desde submarinos comprados através de negócios pouco transparentes, passando por políticos que usam títulos académicos falsos ou que adjudicam grandes empreitadas do Estado a “amigos”, e terminando em fundos de apoio aos incêndios de Pedrógão Grande que ninguém sabe onde foram parar. Nenhum desses negócios se ficou pelas “intenções”. E ao pé dos montantes neles envolvidos, os 5 milhões de euros que se diz valer a casa de Robles são “peanuts”. E, pior, nenhum desses negócios foi feito à custa de património pessoal, mas antes de bens do Estado.

Os julgamentos da falta de coerência política podem ser feitos, em última instância, por cada um, no silêncio e recato da sua reflexão pessoal, no ato do voto eleitoral

Francisco Goiana da Silva

Como ainda não chegou o dia em que a incoerência é punível por lei, resta aos bons católicos, através da sua consciência, julgarem as suas incoerências e tentarem ser, a cada dia, melhores. Não serão essas mesmas incoerências que fazem de nós pecadores? Ou, de um dia para o outro, tornamo-nos tão arrogantes na nossa moralidade que nos achamos santos ou superiores ao próximo?

“Quem dentre vós não tiver pecado atire a primeira pedra. Jo 8, 1-11”

Foram estas as palavras de Jesus quando lhe trouxeram uma mulher apanhada em adultério, ação que à altura era considerada crime à luz da lei de Moisés. Com estas palavras, não quis certamente desvalorizar os pecados da mulher adúltera, mas chamou cada um daqueles que a julgavam a, antes disso, se julgarem a si próprios.

Ao analisar todos os contornos da história de Robles, concluo que, a existir, o seu erro não seja muito diferente da atitude e das palavras agressivas e ofensivas que tenho ouvido. Chocam-me, em particular, aquelas que tenho lido por parte de muitos católicos (grupo que refiro especificamente por ser aquele cujos princípios e valores conheço melhor). Pecam pela forma leviana como comentam esta situação nos seus murais e na qual não me revejo, de todo. Enquanto católico, ainda que muitas vezes a tentação seja grande, esforço-me por não linchar nem espezinhar, porque isso não faz do mundo um lugar melhor. Na era das rede sociais e das “fake news” tal nem sempre é fácil.

Muitos dizem que Ricardo Robles terá exigido de outros princípios morais que não foi ele próprio capaz de seguir na transversalidade da sua vida privada e, por isso, foi incoerente. Em contrapartida, dos católicos que continuam a “apedrejá-lo” na praça pública, esperar-se-ia mais humildade, mais compaixão e menos arrogância moral. Pois estas fazem deles incoerentes. O problema reside, a meu ver, na própria atitude moralista e superior. De facto, todos os tipos de moralismo, sejam de esquerda ou de direita, católicos ou não católicos, acabam por fazer com que quem os defende olhe e critique mais os outros do que a si próprio.

Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu. (…) Tempo de amar, e tempo de odiar; tempo de guerra, e tempo de paz. Eclesiastes 3: 1-8

Os julgamentos de crimes concretizados ou tentados devem acontecer nos locais próprios: tribunais. Os julgamentos da falta de coerência política podem ser feitos, em última instância, por cada um, no silêncio e recato da sua reflexão pessoal, no ato do voto eleitoral. A natureza humana é bastante curiosa em alguns aspetos. Um deles à nossa necessidade quase animal de nos valorizarmos. Para isso, o Homem faz, habitualmente, uso de duas estratégias possíveis: valorizar-se através do crescimento e elevação individual, ou valorizar-se ao rebaixar e destruir quem o rodeia.

Não sou filiado em nenhum partido político nem tão pouco tenho qualquer vínculo ao Bloco de Esquerda. No entanto, tive oportunidade de interagir com Robles e a sua equipa por motivos de índole profissional. Sobre o seu trabalho na área da defesa da saúde dos Lisboetas apenas posso dizer que foi exemplar.

Robles renunciou ao cargo de vereador na passada segunda-feira. E agora? Será que todos aqueles que “apedrejaram” Ricardo Robles se sentem agora seres humanos melhores por isso?

 

Foto de Capa: Christian Wiedijer – Unsplash

Nota da Direção do Ponto SJ: Por razões de ordem profissional e de compromissos entretanto assumidos com outro órgão de comunicação social, o Francisco Goiana da Silva deixa de ter disponibilidade para ser colaborador regular do Ponto SJ. Agradecemos ao Francisco o contributo e disponibilidade que demonstrou para colaborar com o debate neste portal. Que tudo corra pelo melhor. Até já!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.