Reflexões sobre o vácuo

Diria que parece haver um "Princípio do Vácuo". De facto, os vazios nem sempre são uma desgraça; podem ser o espaço necessário para o surgir de novas realidades.

Foi um fim de tarde no hospital que me fez pensar na importância do vácuo. Estivemos várias horas numa sala de espera, uma sala pequena com não mais de dez lugares numa zona reservada do hospital. Deu para observar bem cada pormenor da sala: os avisos afixados nas paredes, o sistema de articulação das poltronas, os vários posters clínicos, etc.

Intrigaram-me, na parede, três pontos de saída de gás. Imaginei que servissem para ajudar à respiração de alguém mais aflito. Percebi que uma das saídas era de ar e a outra de oxigénio. Mas a 3ª? Apanhei uma enfermeira de passagem pela sala. O que tem esta saída? Vácuo, disse ela apressadamente. Comentei que me parecia estranho que aplicassem vácuo nas narinas de uma pessoa com deficiências respiratórias… Ela riu-se e esclareceu que o vácuo não se aplicava no paciente mas que se ligava à máquina que ajudava a pessoa a respirar. Que esta máquina necessitava de vácuo para funcionar.

Não cheguei a perceber como é que a máquina funciona mas, desde aí, tenho pensado muito neste facto curioso do vácuo poder ajudar à respiração. E pareceu-me que isto não acontece só nos hospitais mas em muitas situações da vida. (O que é um aparente contra-senso porque o vácuo, em si, é uma ausência, uma falta). Parece-me mesmo que a História, muitas vezes, não avança por incrementos mas sim por vácuos. Chamei-lhe “Princípio do Vácuo”. Seria assim:

Os vazios nem sempre são uma desgraça; podem ser o espaço necessário para o surgir de novas realidades.

Alguns exemplos:

Ouvi recentemente de uma mãe que o filho tinha vindo reclamar não ter nada para fazer e que ela, em vez de o entreter, lhe tinha respondido simplesmente que era natural, que às vezes não temos nada para fazer. E lembrei-me de ter ouvido esta frase de uma psicóloga infantil: “as crianças precisam de se aborrecer”. Hoje em dia queremos muito ocupar as crianças com actividades úteis e estimulantes para que desenvolvam ao máximo todas as suas capacidades. Se vemos uma criança desocupada vamos logo entretê-la ou dar-lhe coisas para fazer. A psicóloga dizia que é um erro super-ocupar e super-estimular as crianças. Do vazio podem surgir muitas coisas boas como o estimular da criatividade, o fortalecimento de um mundo interior próprio e uma certa não dependência em relação aos estímulos exteriores. Tudo isto podem ser lições preciosas para o futuro da criança. É o vácuo a ajudar a respirar bem…

Na nossa vida de oração por vezes também há vácuos. A oração, na sua essência, é tirar tempo só para Deus; estar lá para Ele e à espera Dele. E isso pode significar termos de enfrentar o vazio.

Na nossa vida de oração por vezes também há vácuos. A oração, na sua essência, é tirar tempo só para Deus; estar lá para Ele e à espera Dele. E isso pode significar termos de enfrentar o vazio. Não me refiro àqueles vazios deliberados a que chamamos “silêncio” mas aos que nos são impostos, bem contra nossa vontade, e que nos aparecem como fracassos espirituais: queríamos “sentir” a presença de Deus e Ele parece ausente, queríamos concentrar-nos e nem sequer conseguimos parar interiormente, queríamos chegar a alguma conclusão e estamos como diante de uma parede em branco.

Ninguém gosta desta experiência. É desconfortável e faz pensar que a oração está a correr mal. Quando isto acontece vem logo a tentação de irmos fazer outra coisa ou de enchermos artificialmente a oração de ideias bonitas ou de emoções forçadas. No entanto, se permanecermos fielmente diante do Mistério durante esses vácuos da oração, daí podem eventualmente resultar coisas boas: uma maior humildade diante do Mistério de Deus, uma maior paciência e fidelidade para com Ele, a descoberta de uma nova maneira de rezar, uma maior abertura a algo novo que Deus queira dar ou uma compreensão mais sincera de quem diz não O encontrar. No fim até talvez possamos ser sugados – precisamente por esse vácuo – para mais dentro do Mistério que não controlamos. Aconteceu isto com Jesus na Sua ressurreição, depois daquele vácuo na cruz, um vazio tão grande que Jesus chegou a dizer “Meu Deus, porque me abandonaste?”.

Nas nossas histórias pessoais também há fases de vazio. Há ausências pontuais (de pessoas, de dinheiro, de alegria, etc) e há também, por vezes, um vazio grande que se instala, enche tudo e ao qual chamamos “crise”. Não quero fazer o elogio da crise, seria um disparate (para além das crises serem dolorosas, nelas, por vezes, a pessoa faz os piores “negócios” da sua vida). Mas temos de reconhecer que muitos saltos de crescimento pessoal se dão no pós-crise. Às vezes parece que é preciso chegarmos ao fundo para podermos ensaiar novas maneiras de estar na vida, eventualmente mais livres e mais criativas.

Se permanecermos fielmente diante do Mistério durante esses vácuos da oração, daí podem eventualmente resultar coisas boas: uma maior humildade diante do Mistério de Deus, uma maior paciência e fidelidade para com Ele, a descoberta de uma nova maneira de rezar, uma maior abertura a algo novo que Deus queira dar ou uma compreensão mais sincera de quem diz não O encontrar.

O princípio do vácuo aplica-se também às instituições. E até mesmo à Igreja. Mas as instituições têm em geral horror ao vácuo e a Igreja não é exceção. Seria normal (sobretudo numa comunidade que tem Deus por Senhor) haver vácuos. Mas nós enchemo-los. Por exemplo, seria normal na Igreja enfrentar o vácuo do não-saber (Deus é tão infinitamente grande e diferente de tudo!). Mas qual é o padre que diz “não sei”? Parece que não podemos ter dúvidas, parece que temos sempre mais respostas do que questões. Seria normal, numa comunidade de adoração, o vácuo do não-fazer, o simples estar diante do Mistério. E daí vir-nos-ia certamente alguma paz e profundidade de vida. Mas nós andamos todos atarefadíssimos, sem mãos a medir, desde os padres às catequistas e, por vezes, nem nas exposições do Santíssimo nos calamos. Seria normal na Igreja os vácuos do não-saber-como-fazer (particularmente nestes tempos de tantas mudanças civilizacionais) mas nós parece que temos planos para tudo e que o Direito Canónico (mal interpretado) dispensa qualquer necessidade de discernimento. Seria normal, numa Comunidade em que “a messe é grande e os trabalhadores são poucos” (Lc 10, 2), haver vácuos do não-haver-quem-faça e esses vácuos puxarem pelos mais novos (na idade ou na fé) para assumirem lideranças e essas lideranças revelarem carismas e gerarem comunidades mais participativas. Mas este processo abre vazios e causa inseguranças. Preferimos então seguir o caminho “seguro”: ter as mesmas pessoas de sempre a ocupar os mesmos espaços de sempre e a fazerem as mesmas coisas de sempre, mesmo que daí resultem leigos e padres super-ocupados e stressados, sem tempo para escutar a Deus e aos irmãos. E sem qualquer tipo de criatividade missionária.

Ou seja: por vezes, na Igreja e nas nossas vidas, é preciso que algumas coisas fiquem a descoberto para que possam surgir outras novas. É a lei da História e a essência do Mistério Pascal. Mas é difícil conviver com o vácuo e fugimos dele “como o diabo da cruz”.

Só não entendemos que, ao fechar a torneira do vácuo, estamos também a dificultar também o processo de entrada de ar novo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.