Não sei se ainda é assim, mas durante muitos dos meus anos de escola era certo e sabido que uma das primeiras atividades seria a redação ‘subordinada ao tema: “As minhas férias do verão”’.
Ninguém tinha muita vontade de realizar a empreitada. Narizes torcidos, olhos revirados, bocas descaídas e mãos sem movimento, eram, no geral, a primeira reação. Talvez porque a boa indolência de quase três meses de férias nos tivesse feito esquecer como manobrar o lápis ou a caneta, ou porque a intensidade do vivido – ou do vazio ontológico – não facilitassem o memoriar fiel das férias, ou talvez fosse a preguiça do regresso ao trabalho, sem mais voltas. O facto é que resistíamos.
Fruto da assimetria de poder na sala de aula, entre professor e aluno, – e muito mais relevante do que isso, sem perceber a relevância da tarefa pedida (e aqui já voltarei) – lá correspondíamos.
Havia quem fizesse uma descrição cronológica de idas e vindas, “Nas minhas férias fomos visitar os meus avós e depois fomos até ao Algarve, acabando em casa até ao começo das aulas”, na formulação mais sintética possível, alargando a letra para cumprir um critério de linhas ou uma mancha de texto que não envergonhasse demasiado. Esforço mínimo, com pouca adjetivação e ainda menos detalhes.
Outros começavam com maior paciência, desfiando quase dia por dia, de forma exaustivamente descritiva “No primeiro dia de férias dormi até tarde, sem despertador, depois levantei-me e fui tomar um pequeno-almoço muito bom com…”, até que a mão destreinada de escrever já doía e a paciência se esgotava, altura em que do terceiro dia se passava sumariamente para o “e assim foram as minhas férias de que eu gostei muito”, ponto final.
Em reduzido número, estavam aqueles que se entregavam ao exercício proposto com desejo de voltar a saborear pelo menos os dias melhores, por impossibilidade de os passar todos ao papel. Sem poupar na adjetivação, nas imagens e na versão sensorial dos episódios vividos, “Mergulhei nas ondas grandes de espuma branca, que me faziam medo ao mesmo tempo que gostava de voltar à tona e saber que as conseguia furar. Umas vezes de mão dada com o pai, outras com os amigos a ver quem resistia mais tempo, até ficar com dedos de velhinho”, ponto final, parágrafo.
A verdade é que correspondíamos à tarefa porque sim. Nenhum destes grupos tinha como captar a relevância do silencioso labor que se operava em cada um. É muitas vezes assim, a escola: um misterioso processo de apreensão de saber, permitido pelo implícito (embora frágil) pacto de confiança entre pais, alunos e educadores.
A verdade é que correspondíamos à tarefa porque sim. Nenhum destes grupos tinha como captar a relevância do silencioso labor que se operava em cada um. É muitas vezes assim, a escola: um misterioso processo de apreensão de saber, permitido pelo implícito (embora frágil) pacto de confiança entre pais, alunos e educadores.
A redação era – é – um meio para ensinar muitas coisas, desde as relacionadas com o domínio da língua, como a gramática e a sintaxe, como o incentivo a ganhar novo vocabulário dando nome às coisas vividas e tonalidade à forma como foram experimentadas.
Mas mais ainda, é um instrumento para nos conhecermos melhor, para percebermos e testarmos a elasticidade dos nossos limites, para nos tornarmos existencialmente, comunitariamente e historicamente conscientes.
Para nos darmos a conhecer uns aos outros – desde logo os nossos próximos, os da nossa turma – e, através da semelhança ou da diferença, criarmos pontes; e ainda que não as verbalizemos ou só as venhamos a reconhecer mais tarde, aprendemos com esse exercício de observação e escuta.
Uma redação sobre as férias, pode ser um estímulo ao “músculo” da nossa imaginação, levando-nos da realidade que conhecemos ao sonho que se torna em saudável ambição; projetando-nos para quem desejamos vir a ser e libertando-nos, quando é o caso, de um quotidiano cru.
Só muito mais tarde percebi que não me pediam para fazer a redação sobre as férias de verão apenas para reiniciar motores escolares, mas para que eu ganhasse, ano após ano, uma linha de estória pessoal e coletiva que construísse memória e projeção, uma e outra, à vez.
Na verdade, e ainda que nem sempre o percebamos, todo o ensino escolar é para isto mesmo: para que, a partir de um conjunto de matérias, apreendidas ao longo de vários anos, cada um se possa encantar pela compreensão do mundo, do outro e de si mesmo. E ser linha de continuidade desta projeção.
Gostava de saber como foram as tuas férias de verão. Podes fazer uma redação?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.