70 anos depois do seu falecimento, creio que vale a pena revisitar a vida e a obra de Maurice Blondel (1861-1949). Enquanto cristão, ele soube assumir a sua vocação de filósofo. Por vocação de filósofo, Blondel compreende a missão de tornar a fé, não só compreensível mas, sobretudo, apetecível ou desejável ao homem moderno.
Hoje, ele é especialmente conhecido pela publicação, em 1893, de l’Action, uma tese original que lhe valeu o título de doutor na Sorbonne parisiense. Nesta obra, Blondel tenta descrever, fenomenologicamente, o movimento do desejo imanente que misteriosamente nos habita. Mostra-se, assim, que um tal desejo nunca se satisfaz na contingência do mundo e da história. Na pluralidade das suas manifestações, a vida humana revela-se como um dinamismo, uma ação, que se orienta para além da contingência deste mundo finito.
Só assim, a filosofia poderá abrir-se livremente às possibilidades propostas pela Revelação (cristã). A fé não surge, portanto, como um irracionalismo de quem é incapaz de enfrentar a realidade do mundo: trata-se antes de uma escolha legítima de quem espera vir a consumar o desejo de infinito que o habita.
Desta forma, Deus não surge como um obstáculo, qual adversário, às nossas aspirações mais profundas, mas apresenta-se, antes, como a possiblidade para a pessoa humana encontrar o sentido da sua vida.
Blondel viveu, talvez como nós, num mundo cheio de incertezas e em profundas mudanças. De facto, ele foi extremamente marcado pela progressiva implantação da República na sua França natal, sempre acompanhada por uma separação cada vez mais explícita entre o Estado e a Igreja. Além disso, ele também assistiu ao crescimento dos movimentos nacionalistas e totalitários que conduziram a Europa ao drama das guerras mundiais do século passado.
Deus não surge como um obstáculo, qual adversário, às nossas aspirações mais profundas, mas apresenta-se, antes, como a possiblidade para a pessoa humana encontrar o sentido da sua vida.
Enquanto personagem destes enredos da História e na qualidade de filósofo cristão, Blondel soube ter o discernimento suficiente para se distanciar, desde o princípio, da Action française de Charles Maurras. Enquanto alguns católicos viram no combate à República a possibilidade de restaurar uma cristandade antiga, Blondel apoiou certas correntes do catolicismo social e republicano do seu tempo. Opondo-se diretamente aos partidários da Action française, o filósofo da ação escreveu uma série de artigos assinados com o pseudónimo Testis (cf. Maurice Blondel, Une alliance contre naturé : catholicisme et intégrisme, Lessius, Bruxelles 2000). A crítica contra as correntes saudosistas e totalitárias, que aí se encontra, funda-se na sua concepção do homem e da filosofia, como sendo naturalmente abertos a Deus. Na medida em que o desejo se orienta naturalmente para Deus, dispensa-se impor a fé desde cima, a partir de uma autoridade forte, capaz de gravar os valores cristãos na ordem social, como se de uma carapaça exterior se tratasse; uma carapaça que nos submeteria e congregaria a todos artificialmente num mesmo horizonte.
Blondel cria um neologismo para condenar esta concepção, segundo a qual o fim das cristandades do passado equivaleria necessariamente ao fim da experiência religiosa e da prática cristã. Por “monophorisme”, o filósofo entende a atitude de se querer impor e transmitir a fé de cima para baixo; a atitude de quem se focaliza apenas, ou sobretudo, na ordem política exterior, em detrimento do movimento espontâneo da vida em progressão para Deus.
Próximo de certos discursos do Papa Francisco, sobretudo das suas chamadas de atenção contra os nacionalismos de exclusão, Blondel opõem-se aos apoiantes católicos de Maurras, insistindo no essencial do Evangelho. O Magnificat, o Sermão da Montanha, as obras de misericórdia de Mateus 25, mais não são que a autenticidade da fé. Tudo gira em torno da humildade de quem, movido pela fé, habita o mundo como o fermento das parábolas de Jesus (cf. Mt 13, 33 ; Lc 13, 20-21). Sem que ninguém repare na sua presença, o fermento transforma, pouco a pouco, não apenas outrem, mas todos nós que existimos em relação uns com os outros no mesmo mundo e ao longo de um determinado momento histórico.
Trata-se de acreditar mais na fraqueza da cruz do que na força de um Constantino. Não, a fé não precisa do poder de um Pilatos. Mesmo sem o royalisme catholique do passado, mesmo numa república laica como a nossa, mesmo no mundo secularizado de hoje em dia, é possível encontrar o Deus de Jesus. E essa talvez seja a grande lição que podemos reter da vida e da obra de Maurice Blondel.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.