Recomeçar pelo fim

Uma reflexão sobre a sabedoria dos recomeços por ocasião do Ano Novo judaico.

Antes de mais, caro leitor ou leitora, queria desejar-lhe um excelente ano novo! Que 5781 seja tão bom, se possível melhor (e com menos surpresas desagradáveis!), que 5780! É verdade, já lá vão 5781 anos desde a criação do mundo, de acordo com a tradição judaica, e isso é motivo de festa! Não, não quero que mude de calendário (o nosso, o “gregoriano”, não é mau e estes mais de 2000 “anos da graça” são, seguramente, um ótimo ponto de referência) e menos ainda que adira a hipóteses criacionistas de duvidoso valor e nenhum proveito. Mas, quero que saiba que na passada sexta-feira, ao pôr-do-sol, começou um novo ano judaico e quero falar-lhe dos dez dias que medeiam entre o Ano Novo e o Yom Kippur (“dia de perdão”), que começa este domingo ao final da tarde.

Primeiro, contudo, uma confissão: não gosto de “recomeços”. Não me importo de “começar” coisas novas e novos tempos e até sou um daqueles seres humanos que embala em rotinas com uma certa facilidade e proveito espiritual, mas “recomeçar” é um sofrimento: sinto-me sempre atropelado pelo passado, vivo por antecipação a repetição de erros e medos, abraço sem grande sentido crítico essa letargia do eterno retorno dos nossos mesmos. Por tudo isto, não resisto à boa tentação de colher a sabedoria alheia dos recomeços. Neste caso, a da tradição judaica.

Um primeiro aspeto, talvez o mais paradoxal, é que, no judaísmo, o Ano Novo é mais prelúdio que começo ou recomeço. Claro que há festa ao virar de mais uma página do calendário e que se trocam desejos que exprimem a esperança no que se anuncia, mas o início do mês de Tishrei, o primeiro do calendário judaico (que é lunar), traz logo dez dias que são uma preparação para o Yom Kippur, o “dia de perdão”, o mais sagrado dos dias. Entre o Ano Novo e o Yom Kippur a palavra de ordem é “arrependimento” (“teshuvah”, em hebraico), porque naquele décimo dia, assim reza a tradição judaica, o veredito divino anual a respeito de cada um recebe o “selo” que ainda lhe faltava no Ano Novo. E, assim o esperam os crentes, é preferível que esse “selo” seja a misericórdia, o perdão. Estranha forma de celebrar o novo ou o de novo “novo”! O recomeço é paradoxalmente um descomeço: começa-se pedindo a Deus que descomece os nossos inícios sempre trapalhões, sempre imperfeitos, sempre em falta. Talvez isto soe dissonante aos nossos ouvidos habituados ao “pensamento positivo”, mas há aqui muito de realismo espiritual: sob o signo do perdão e da misericórdia, os inícios e reinícios perdem aquele insuportável “peso” que nasce dos desejos de perfeição demasiado humanos, desse voluntarismo espartano do “agora é que vai ser!”. Sob o signo da misericórdia, os recomeços são oportunidades e não “obrigações”, nas quais “falhar é uma opção”, porque a nossa é sempre uma história de pecado e graça, não é uma epopeia hollywoodesca. E – dá vontade de o dizer – graças a Deus!

Talvez isto soe dissonante aos nossos ouvidos habituados ao “pensamento positivo”, mas há aqui muito de realismo espiritual: sob o signo do perdão e da misericórdia, os inícios e reinícios perdem aquele insuportável “peso” que nasce dos desejos de perfeição demasiado humanos, desse voluntarismo espartano do “agora é que vai ser!”.

Começar por des-começar não é, contudo, na tradição judaica, uma apologia da resignação ou do “coitadíssismo” existencial. Juntamente com o arrependimento (a tal “teshuvah”) e a oração (em hebraico, “tefilah”), o crente é chamado à caridade (em hebraico, “tzedakah”). Talvez nos assuste esta associação entre perdão e esmola (vão tentar vender-nos outra vez indulgências?!), mas a verdade é que ela é antiga e venerável na sua sabedoria e abre-nos ainda outra pista sobre a maneira judaica de recomeçar. A caridade não compra o perdão do Deus, mas reestabelece o ciclo de generosidade que o nosso pecado sempre interrompe: Deus dá e o nosso pecado “retira de circulação” os dons que recebemos e que só frutificariam se continuassem a circular. Nesta autêntica “economia divina”, não pode haver perdão sem generosidade e, por isso, o Ano Novo é uma espécie de “reset bancário” que nos convida a voltar a “investir” na vida de acordo com as “regras de mercado” estabelecidas por Deus. Do ponto de vista da “filosofia dos recomeços”, esse convite liberta-nos da avareza que tende a inspirar os “planos pessoais de objetivos para o novo ano” (ou para o “recomeço”). No limite, talvez precisemos de ser libertados desse desejo tão humano e tão egoísta de “singrar na vida a todo o custo” em nome de um bem mais simples e sereno “ser generoso com os outros”, “escolher cada dia a prodigalidade”. E a caridade (sim, a esmola!) talvez seja o melhor antídoto contra essa tentação de fazer dos recomeços uma luta desenfreada pela minha sobrevivência.

Finalmente, o calendário judaico do Novo ano coloca-nos, sem aviso, diante do fim. Ou melhor, diante do todo da nossa vida e da sua finalidade. No Ano Novo, relata-nos a tradição judaica, Deus abre o livro da vida e escreve o destino de cada uma das suas criaturas. No Yom Kippur, dez dias depois, o Criador dá a esse texto o peso da definitividade. Ali, naquele intervalo, joga-se a liberdade humana. Tomado à letra, um tal calendário parece dispensar-nos de viver os mais de 340 dias restantes. Na sua sabedoria, contudo, oferece ao ato de (re)começar um horizonte: os primeiros passos, ainda que hesitantes, têm de ser mais que esse gesto mecânico de começar outra vez a andar. Não basta aborrecer a inércia, é preciso levantar os olhos para a meta, abrir os dias de recomeço à graça do definitivo, do que resiste à espuma do tempo. A tentação é viver apenas e só para os combates e os prazeres de cada dia, chegando a reduzir o que somos a essa lufa-lufa de tarefas cumpridas, experiências feitas, contas certas. Esse gesto profético de olhar a morte e o fim nos olhos em cada princípio oferece-nos o barómetro para julgar o que é mesmo essencial e saborear a liberdade de não querer tudo. A exigente graça do fim é, afinal, a garantia de que estamos investidos na bênção desde o início e em cada um dos reinícios.

Caro leitor, cara leitora, shanah tovah (em português, “bom ano”)!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.