Quaresma e Alegria

É tempo de alargar o olhar para uma visão mais completa da realidade, que não ignora os dramas atuais, mas dá também atenção à bondade, à beleza, à justiça e aos pequenos passos de conversão - meus e dos outros.

“Será que a Alegria pode ser um bom propósito de Quaresma?” – perguntei-me, há umas semanas, ainda antes da Quarta-feira de Cinzas. A pergunta surgia do desejo de aproveitar bem este tempo para uma conversão verdadeira, aparentemente incompatível e em tensão com a sede de viver alegre. Fui rezando a pergunta, com a ajuda do Evangelho e de conversas que fui tendo.

De facto, abro as notícias e não posso ignorar os dramas que se passam no mundo. Entre crises e guerras, injustiças, sofrimento e abusos que nos envergonham, parece que o nosso tempo convida mais ao desânimo do que à esperança. Será, então, ingénuo ou insensível viver alegre com tudo o que se passa à minha volta?

Talvez seja mais fácil associar a Alegria apenas à Páscoa. Neste tempo de preparação até lá, dou por mim a confundir o despojamento com o vazio e o jejum com a fome; o ter um coração contrito com o ter um coração contraído; a temperança com a apatia. Concentro o foco na minha miséria e no quanto isso me entristece, esquecendo-me da misericórdia de Deus. Como se, durante umas semanas, deixasse suspensa e escondida a convicção de que Jesus está vivo.

“Manifestei-vos estas coisas, para que esteja em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja completa” (Jo 15, 11), diz Jesus. Lembrei-me desta passagem e fui procurá-la para perceber o contexto em que surge:

“Manifestei-vos estas coisas, para que esteja em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja completa” (Jo 15, 11)

Antes da Sua Paixão, depois de lavar os pés aos discípulos, anunciar a traição de Judas e a negação de Pedro, Jesus passa todas aquelas confusões pelo crivo com esta frase: “permanecei no Meu Amor” (Jo 15, 9). Vai direto à essência, deixando claro que o Seu Amor por nós é a razão e a fonte da nossa Alegria, independentemente de tudo o que nos possa acontecer. É ao Amor e à Alegria que somos chamados. Na minha rotina acelerada e preocupada, lembrar-me deste mandamento simplifica-me e dá sentido ao que faço.

Descobri a resposta à pergunta inicial: é bom viver alegre, mesmo na Quaresma. No entanto, a alegria não surge – ou não subsiste – por si só. É um dom que posso estar mais ou menos disponível para receber. A Alegria mais funda não a dou a mim própria, mas vivo alegre quando partilho desta clareza de Jesus: o horizonte é o Amor. O encontro verdadeiro.

Pelo caminho, tudo é meio que me ajuda ou não a chegar lá. O despojamento e o jejum só farão sentido se forem meio para me libertar dos apegos dos quais faço depender (erradamente) a minha felicidade. Converter o coração é abri-lo para que caiba cada vez mais desta Alegria completa. O coração contrito tem de conduzir-me à reconciliação, em vez de me prender àquilo que antes me separava de Deus. E a temperança é o que me permite navegar no dia-a-dia, ajustando as minhas escolhas ao horizonte.

É tempo de alargar o olhar para uma visão mais completa da realidade, que não ignora os dramas atuais, mas dá também atenção à bondade, à beleza, à justiça e aos pequenos passos de conversão – meus e dos outros. Que não larga mão da esperança que me faz mais criativa e disponível para encontrar soluções. É tempo de fazer jejum do desânimo e alimentar-me da Alegria do Amor.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.