Na tela do cinema, há um homem sereno, deitado no chão da sua casa, a ler antes de adormecer. Na fila da frente, há uma mãe que volta e não volta pega no telemóvel, a luz ofusca-a a ela, a quem está ao seu lado (a filha) e a quem está atrás dela (eu).
Na tela do cinema, há um músico atormentado com o medo que a criatividade lhe falte para continuar a compor. Na fila de trás, há um casal que arranha o balde de cinco toneladas de pipocas, à procura das que possam restar no fundo do recipiente.
Na tela do cinema, há um homem paciente que limpa casas-de-banho públicas, em Tóquio, com eficácia, minúcia e humildade. Na fila da frente, a mãe insiste em manter a conversa de WhatsApp atualizada, impaciente. Repito, ofuscando os que estão à sua volta e atrás de si.
Na tela do cinema, a mulher do maestro reconhece que perdeu a sua vida, que não conseguiu mudar o objeto do seu amor, que não seria possível fazê-lo e deixa-se morrer, derrotada. Na fila de trás, há um casal que comenta o filme como se estivesse em sua casa, na sua sala, frente ao ecrã da sua televisão: “Ai, ai, ai, que ela agora vai apanhá-lo!”
Duas semanas, dois filmes, duas salas de cinema em dois bairros lisboetas onde as famílias são de classe média alta. “Importa-se?”, sussurro, debruçada sobre a cadeira da mãe no WhatsApp. “Importo-me, não estou a incomodar ninguém”, responde levemente alterada, num tom afectado, abrindo muito as vogais.
Duas semanas, dois filmes, duas salas de cinema com 20% de taxa de ocupação, com gente bem vestida e aparentemente interessada o suficiente para ver Dias Perfeitos de Wim Wenders e uma das últimas sessões do filme de Bradley Cooper sobre Leonard Bernstein (que está na Netflix). As luzes acendem-se e, discretamente, olho para o casal que esteve em amena cavaqueira atrás de mim. Ótimo aspecto.
Não quero parecer classista, por isso, segue mais um exemplo de como vivemos alienados dos outros. Com frequência, nos transportes públicos, ouço conversas pessoais, filmes, séries ou reels em alta voz, que saem dos telefones dos outros passageiros. Não são miúdos com colunas JBL nas mãos, a tentarem marcar uma posição na sociedade. Não. São homens e mulheres de meia idade, como eu.
Pergunto: quando deixámos de saber estar? Terão sido os dois anos de pandemia e de termos ficado em confinamento? Logo, mesmo no espaço público, agimos como se estivéssemos em casa? É a (má) convivência que temos com os smartphones que nos levaram a esquecer a etiqueta?
Acharmos que as nossas vontades se sobrepõem às dos outros e não os respeitarmos é meio caminho andado para a perda total de empatia e, por consequência, para a desestruturação da sociedade. Sinceramente, não me parece que esteja a exagerar.
Por isso, volto ao filme de Wim Wenders— que conquistou o Prémio de Melhor Actor para Kōji Yakusho e Prémio do Júri Ecuménico no Festival de Cannes; e está nomeado para Melhor Filme Estrangeiro nos Óscares deste ano. Dias Perfeitos é um convite a tirarmos os olhos dos nossos umbigos (que hoje são os nossos telefones) e a observarmos o que se passa à nossa volta. A sentirmos o sol aquecer o nosso rosto e enchermo-nos de alegria por isso. Tão só. É sobre a importância de darmos graças pelas pequenas coisas, pelas nossas rotinas aparentemente insignificantes. Depois, certamente, sentir-nos-emos mais humanos e, quem sabe, mais respeitadores da vida em comunidade.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.