Desde a eleição do Papa Francisco para a cátedra petrina, em 2013, muito se tem comentado sobre as suas supostas novidades ou inovações. A meu ver, os gestos e as declarações que mais nos surpreendem no atual pontificado são, no entanto, normais, ou não estaríamos diante do Papa que é, não só o primeiro latino-americano de toda a história, como também o primeiro Soberano Pontífice posterior ao Concílio Vaticano II (1962-1965) a não ter participado nesse evento crucial para a Igreja moderna. Essa identidade diferenciadora do atual Vigário de Cristo ou o facto de ele representar, por assim dizer, uma nova geração em relação aos seus predecessores, facilita-lhe, a meu ver, uma nova abordagem ou, talvez, uma nova forma de se relacionar com as mais diversas esferas das nossas sociedades plurais de um mundo cada vez mais global. Não se trata, contudo, de uma ruptura com a tradição do passado. Trata-se, antes, e mais precisamente, de seguir a tradição viva que anima a Igreja a partir de dentro: uma tradição que percorre a História dos povos numa Igreja que sempre procura ser fiel ao Espírito. É agindo a partir das nossas sociedades cada vez mais secularizadas, onde a antiga cristandade parece já não ter lugar, que Francisco procura ser fiel à tradição católica.
Nesse sentido, parece-me que a insistência no respeito dos direitos humanos, acompanhada por gestos concretos de estima por quem não é católico, ou nem mesmo cristão, não constitui, da parte de Francisco, um abdicar dos princípios fundamentais da religião cristã. Pelo contrário, trata-se da forma mais eficaz de testemunhar a fé autêntica em Cristo num mundo global e plural como o de hoje. É por isso que não aceito a ideia segundo a qual o atual pontificado seria apenas, ou extremamente, político e pastoral (no sentido pejorativo do termo). É verdade que este pontificado não é isento de ações políticas. Mas essas ações não se reduzem a uma simples estratégia que procura apenas resolver os problemas que hoje enfrentamos, problemas tais como as alterações climáticas, as migrações, o terrorismo e o fundamentalismo religioso… Ao procurar unir sinergias na resolução desses problemas – que são de facto urgentes, diga-se – o Papa alarga o campo de diálogo muito para além da esfera meramente eclesial. Mas essa extensão do âmbito da ação da Igreja resulta de um desejo autêntico de seguir e de anunciar Cristo através de uma fraternidade que se encarna nas relações concretas entre nós, seres humanos.
Nesse sentido, parece-me que a insistência no respeito dos direitos humanos, acompanhada por gestos concretos de estima por quem não é católico, ou nem mesmo cristão, não constitui, da parte de Francisco, um abdicar dos princípios fundamentais da religião cristã. Pelo contrário, trata-se da forma mais eficaz de testemunhar a fé autêntica em Cristo num mundo global e plural como o de hoje.
A recente visita do Papa Francisco a Marrocos ilustra bem o que procuro expressar aqui. Dando seguimento ao documento histórico “A Fraternidade Humana. Em prol da paz mundial e da convivência comum”, que Francisco assinou conjuntamente com representantes islâmicos, o atual Papa volta a promover o “diálogo inter-religioso e o conhecimento mútuo entre os fiéis das (…) duas religiões, ao mesmo tempo que recorda (…) – oitocentos anos depois – o histórico encontro entre São Francisco de Assis e o Sultão al-Malik al-Kamil.” Tais palavras são proferidas num discurso que Francisco dirige a “Sua Majestade, Altezas Reais, Ilustres Autoridades do Reino de Marrocos, membros do Corpo Diplomático, queridos amigos marroquinos”, um discurso que faz eco desse episódio marcante da vida do Poverello de Assis:
“Este profético evento demonstra que a coragem do encontro e da mão estendida é um caminho de paz e harmonia para a humanidade nas situações onde o extremismo e o ódio são fatores de divisão e destruição. Além disso, almejo que a estima, o respeito e a colaboração entre nós contribuam para aprofundar os nossos laços de sincera amizade, consentindo que as nossas comunidades preparem um futuro melhor para as novas gerações. Aqui nesta terra, ponte natural entre a África e a Europa, desejo reiterar a necessidade de unirmos os nossos esforços para dar novo impulso à construção dum mundo mais solidário, mais empenhado num diálogo honesto, corajoso e necessário que respeite as riquezas e especificidades de cada povo e de cada pessoa.”
Compreendo que uma tal declaração possa ser interpretada como uma simples estratégia política que procura alcançar a paz meramente mundana. Também compreendo que alguns dos meus irmãos católicos possam ficar surpreendidos pelo facto de tais palavras não referirem, ao menos explicitamente, o nome de Cristo. No entanto, devemos prestar especial atenção para o que se segue no mesmo discurso:
“No respeito das nossas diferenças, a fé em Deus leva-nos a reconhecer a eminente dignidade de todo o ser humano, bem como os seus direitos inalienáveis. Acreditamos que Deus criou os seres humanos iguais em direitos, deveres e dignidade, e chamou-os a viverem como irmãos e espalharem os valores do bem, da caridade e da paz. É por isso que a liberdade de consciência e a liberdade religiosa – esta não se limita à mera liberdade de culto, mas deve consentir a cada um viver segundo a própria convicção religiosa – estão inseparavelmente ligadas à dignidade humana. Neste espírito, precisamos sempre de passar da simples tolerância ao respeito e estima pelos outros, já que se trata de descobrir e aceitar o outro na peculiaridade da sua fé e enriquecer-se mutuamente com a diferença num relacionamento marcado pela benignidade e a busca daquilo que podemos fazer juntos.”
É por isso que a liberdade de consciência e a liberdade religiosa – esta não se limita à mera liberdade de culto, mas deve consentir a cada um viver segundo a própria convicção religiosa – estão inseparavelmente ligadas à dignidade humana. (Papa Francisco)
Por outras palavras, a atitude, nos gestos e nas palavras, de acolher o outro, mesmo quando se trata de um muçulmano que não professa a mesma fé, dá testemunha da fé no Deus bíblico, um Deus que “tem em conta a dignidade da pessoa humana, por Ele mesmo criada” (Dignitatis humanae §11). Essa fé torna-se perceptível no momento em que abraçamos fraternalmente o outro, o diferente. O Papa não reduz a sua atitude a uma estratégia política. Prova disso é o seu desejo autêntico de passar da “simples tolerância” à verdadeira “estima” pelo próximo. Com efeito, bem podemos ‘tolerar’ com indiferença e desdém os outros credos a ponto de perdermos a capacidade de amar verdadeiramente as pessoas que os professam como criaturas de Deus, tal como elas são realmente. Essa ‘tolerância’, fechada no seu orgulho e sem “sincera amizade”, não chega nem para a resolução dos problemas políticos hodiernos, nem para o testemunho eficaz da fé cristã (sobretudo no nosso mundo de hoje, cada vez mais plural e global). É isso que nos diz Francisco.
Daí a importância do diálogo inter-religioso, um diálogo verdadeiro onde se exerce a capacidade de uma estima mútua entre membros de religiões diversas. Através desse encontro humano e genuíno, a fé num Deus respeitador da dignidade humana encarna-se realmente nas relações concretas que podemos desenvolver com os outros. Só através de relações de autêntica estima, a nossa fé poderá tornar-se visível e compreendida. A fraternidade entre homens e mulheres de diferentes credos não é apenas indispensável para que possamos superar os desafios contemporâneos. Essa fraternidade também testemunha eficazmente a autenticidade da nossa fé cristã.
É por isso que o Papa não se cansa de sublinhar o valor da religião, mesmo num mundo cada vez mais secularizado como o nosso: “o diálogo autêntico convida-nos a não subestimar a importância do fator religioso para construir pontes entre os homens e enfrentar com êxito os desafios antes mencionados.”
No fundo, muitas das palavras e dos gestos do atual pontificado, que constituem para alguns uma novidade porventura escandalosa, mais não são que a aplicação do Sagrado Concílio Ecuménico de meados do século passado: o tão mencionado Vaticano II.
“Este Concílio Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Esta liberdade consiste no seguinte: todos os homens devem estar livres de coacção, quer por parte dos indivíduos, quer dos grupos sociais ou qualquer autoridade humana; e de tal modo que, em matéria religiosa, ninguém seja forçado a agir contra a própria consciência, nem impedido de proceder segundo a mesma, em privado e em público, só ou associado com outros, dentro dos devidos limites. Declara, além disso, que o direito à liberdade religiosa se funda realmente na própria dignidade da pessoa humana, como a palavra revelada de Deus e a própria razão a dão a conhecer” (Dignitatis humanae §2).
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.