Quais políticas?

Votar em quem, se não há ninguém que vá ver as condições em que vivem? Entre uma esquerda que os usa e uma direita que os responsabiliza, nenhuma oferece soluções. Talvez ninguém queira saber.

Arthur Fleck tem um riso que ninguém quer imitar. É um riso chorado, de desespero e tristeza. Arthur vive com uma mãe obcecada com um homem que diz ser pai de Arthur, o milionário candidato a senador Thomas Wayne, pai de uma criança chamada Bruce. O universo da DC Comics parece estar contido nestas referências e, no final, com a morte dos pais de Bruce. Parece haver uma incongruência na diferença de idades entre Joker e Bruce, mas talvez a diferença seja entre um tipo que se repete, (Joker), como veremos mais à frente no filme, e uma pessoa (Bruce Wayne).

Joker não é sobre um supervilão, nem sobre Batman, apesar de estarmos em Gotham City. Arthur mora num bairro pobre do Bronx. Trabalha como palhaço para uma agência, tanto vai hospitais pediátricos, lojas em liquidação total, e tem uma doença mental que o obriga a tomar medicamentos e a falar regularmente com uma terapeuta. O estado mental de Arthur é uma parte tão relevante do filme que seria possível falar apenas da sua degradação ao longo do filme. Poderia associar esta condição à maldade que o torna um assassino. Mas não é essa, quanto a mim, a questão mais difícil e mais premente de Joker.

Joker tem impressionado a maioria das pessoas, sem dúvida por causa da interpretação extraordinária de Joaquin Phoenix, também porque todo o ambiente do filme não é desconhecido para muitas pessoas, quer para as que vivam em situações de exclusão, quer para as que conheçam essa realidade (até por tantas vezes estar à nossa porta). Fechar os olhos à realidade alarmante da existência de dois milhões de pobres, por exemplo, em Portugal (pessoas que ganham menos de 400 euros por mês) não é solução. À esquerda, acreditar que estas pessoas podem sair da pobreza porque dá voz às suas queixas não resolve a contradição entre o discurso enganoso e uma ideologia que só cria mais pobres. À direita, defender que o indivíduo tem em si o poder de escapar de um meio marcado pela violência e pela carência extrema é de uma indiferença quase tão insana como o riso de Arthur. Não é possível fazer tudo sozinho, menos quando se é doente, por isso Arthur piora muito quando o apoio social é cortado e deixa de ter acesso a medicamentos e à terapia de que necessita.

Mais difícil é lidar com a ira, com a revolta dos que vivem encaixotados em bairros periféricos ou isolados, sujeitos a trabalhos sem condições nem protecção mínima, eternamente excluídos, ao ponto de os próprios nem saberem que existem.

É fácil condenar Arthur Fleck pelos seus actos, porque um assassino é um assassino, por muitas explicações que advogados de defesa encontrem para atenuar a sua pena. Mais difícil é lidar com a ira, com a revolta dos que vivem encaixotados em bairros periféricos ou isolados, sujeitos a trabalhos sem condições nem protecção mínima, eternamente excluídos, ao ponto de os próprios nem saberem que existem. Quantas pessoas vivem assim? Estamos dispostos a ignorar o seu sofrimento, atirando cobardemente as soluções para políticas públicas que nunca poderão solucionar estes casos? Vamos torcer o nariz aos que na miséria tomam Joker como herói e saem para a rua para espalhar o caos porque não têm nada a perder? Qual é a politica que permite que alguém viva com a noção de que, sim, existe, pertence, é respeitado como ser humano? Para começar, nenhuma que seja fiscal.

Arthur quer ser tratado com decência. Não quer viver a pensar que não existe, não tem relevância, não pertence. Tem as mesmas necessidades do que qualquer outra pessoa. Se aceitamos que os seres humanos são todos iguais, com que direito defendemos que uns têm a obrigação de suportar a sua dor em silêncio?

Joker é um filme impressionante porque nos mostra com absoluta clareza que a política não funciona ou é muito frágil para aqueles que vivem à margem. Há dias Miguel Sousa Tavares fazia uma relação sobranceira (ou nas palavras do comentador, “provocatória”) entre os abstencionistas e os que não pagam impostos (imagino que sejam os que não pagam IRS porque impostos todos pagamos). Podem ser os excluídos que não votam, sim. Os que não ganham dinheiro suficiente para pagar o IRS. Votar em quem, se não há ninguém que vá ver as condições em que vivem? Entre uma esquerda que os usa e uma direita que os responsabiliza, nenhuma oferece soluções. Talvez ninguém queira saber.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.