Todos temos recordações de infância! Para uns, boas ou muito boas. Para outros más, ou muito más. Há ainda alguns que foi assim, assim, outros nem se lembram que tiveram infância! Mas a infância não se repete, passa num instante e deixa marca para toda a vida!
A verdade é que ser criança hoje não é mais fácil do que quando nós éramos crianças! As crianças de hoje são mais altas, mais gordas, mais ocupadas, mais sozinhas, numa família reduzida, muitas vezes monoparental, sem irmãos nem outros familiares por perto. São mais dependentes. Levamo-las de carro para todo o lado. São a geração do banco de trás do carro! Têm Iphone, Ipad, Ipod, I, I, I, mas falta-lhes o Nós.
Têm sintomas de guerra dentro da própria casa, quando passam por situações de violência doméstica ou de separação parental litigiosa. São vítimas de uma guerra em que os atores principais são as suas figuras de referência e que mais amam, que as fazem tantas vezes sentirem-se culpadas dessa guerra!
Tendo-se assinalado, em abril, o mês da Prevenção dos Maus-Tratos na Infância, é fundamental que cada um de nós esteja atento e proteja as crianças à sua volta. Porque o que fizermos, ou não, pelas crianças de agora, será decisivo nos adultos que se irão tornar.
Tendo-se assinalado, em abril, o mês da Prevenção dos Maus-Tratos na Infância, é fundamental que cada um de nós esteja atento e proteja as crianças à sua volta. Porque o que fizermos, ou não, pelas crianças de agora, será decisivo nos adultos que se irão tornar.
O slogan do mês de abril foi “Serei o que me deres…que seja amor!” precisamente porque as crianças replicam o que viveram e a forma como viveram, se não tiverem um apoio atempado e/ou especializado.
Se queremos criar adultos felizes, tudo começa na infância! Preferencialmente sentindo-se amados e desejados desde o início. Inseridos numa família (independentemente da sua constituição) onde os afetos, a valorização, o tempo de qualidade, a não violência e os limites estão presentes! Quando nada disto lá está, muitas crianças ficam em perigo.
As 313 Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) têm acompanhado mais de 70.000 crianças em perigo por ano.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, temos cinco tipos de Maus-Tratos:
1 – Maus-tratos físicos, que resultam de qualquer ação, não acidental, isolada ou repetida, infligida por pais, cuidadores ou outros com responsabilidade face à criança ou jovem, a qual provoque (ou possa provocar) dano físico.
A maioria das situações de maltrato físico ocorre quando os pais perdem o controlo, mas outras correspondem a comportamentos sádicos e premeditados (por exemplo, queimaduras com pontas de cigarro, etc.).
2 – Maus-tratos psicológicos ou abuso emocional, que resulta da incapacidade de proporcionar à criança ou jovem um ambiente de tranquilidade, bem-estar emocional e afetivo, indispensáveis ao crescimento, desenvolvimento e comportamento equilibrados. Engloba diferentes situações: a ausência ou precariedade de cuidados ou afeição adequados à idade e situação pessoal; a completa rejeição afetiva; a depreciação permanente da criança ou do jovem ou mesmo a alienação parental.
3 – A negligência, que é a principal categoria de perigo diagnosticada pelas CPCJ, diz respeito à incapacidade de proporcionar à criança ou ao jovem a satisfação das necessidades de cuidados básicos de higiene, alimentação, afeto, saúde e educação.
Pode manifestar-se de forma ativa (com intenção de causar dano) ou passiva (origem na incompetência ou incapacidade dos pais ou outros responsáveis). Está associada, por vezes, a circunstâncias sociais adversas e pode ocorrer por “incompetência secundária” (doença psiquiátrica, alcoolismo, etc …). Um dia, um jovem adulto que teve uma infância com vários episódios de adversidade, acabando por ser acolhido, disse-me: “a minha mãe fazia tudo o que era possível. Mas o problema é quando o possível não é o suficiente!” Isso é negligência!
4 – O abuso sexual, que diz respeito ao envolvimento de uma criança ou adolescente em atividades cuja finalidade visa a satisfação sexual de um adulto ou outra pessoa mais velha e mais forte. Baseia-se numa relação de poder ou de autoridade. E o problema é que, geralmente, parece ser uma relação afetuosa. Para a vítima, este abuso pode aparecer vestido de bom-trato.
Quando falamos de abuso sexual podemos estar a falar de quatro verbos: tocar, falar, ouvir ou ver. Colocar crianças a ver, ouvir ou falar sobre conteúdos sexuais que não são adaptados à sua idade também é uma forma de abuso e vai ser decisivo na relação íntima futura que irão ter.
5 – O Síndroma de Munchausen por Procuração é a atribuição à criança, por parte de um elemento da família, de sinais e sintomas vários de uma doença, gerando hospitalizações frequentes, necessidades de procedimentos de diagnóstico exaustivos e recurso a técnicas invasivas. Apesar de ser uma forma rara de maltrato, também existe em Portugal.
Os maus-tratos são transversais a todas as classes sociais. E nas classes económicas mais favorecidas são mais invisíveis, têm sempre forma de disfarçar os comportamentos, encontrando justificações “legais” para o que não se justifica. Declarações médicas a justificar faltas na escola, por exemplo. A maior parte das vezes, estamos a falar de abusos psicológicos e emocionais que não se veem com facilidade. Só estando atento aos comportamentos.
Proteger crianças está ao alcance de todas e de todos. Apenas precisamos de estar atentos aos sinais das crianças que nos rodeiam, sejam família biológica, ou de afeto, mais próximas ou mais distantes. O que importa é que não sintam que não queremos saber delas.
Sinais como: marcas físicas de maus-tratos, tristeza profunda, apatia, irritabilidade ou violência gratuita, sonolência constante, fuga ao toque ou procura excessiva de toque ou vocabulário impróprio para a idade são motivos de alerta.
A Maria um dia confessou-me que o que lhe doeu mais do que os maus-tratos foi a avó ter sabido o que se passava e nada ter feito. Ou a vizinha do lado, ou a tia. Todos percebiam o que estava a acontecer e nada fizeram, por achar que não lhes dizia respeito!
O Papa Francisco falava-nos da globalização da indiferença. Neste mundo da globalização, estamos perante a globalização da indiferença, onde nada nos toca. Se os juros da casa voltam a subir, é sem dúvida uma tragédia, mas as crianças à nossa volta a serem maltratadas, não nos diz respeito.
Combater a globalização da indiferença é pedir que estejamos atentos, que olhemos à volta com óculos protetores das nossas crianças. Elas são um tesouro cada vez mais raro, são o maior e melhor investimento que podemos fazer, por isso não podemos deixar passar, à espera que cresçam!
Tantas vezes queremos dar às nossas crianças tudo o que podemos e não podemos para não ficarem para trás. Mas o que elas querem mesmo é atenção, tempo de qualidade. Claro que também querem bens materiais, mas quando perguntamos “o que foi melhor nas férias?” foi o castelo de areia que construíram em conjunto, ou o mergulho inesperado que aconteceu. Foram os momentos descontraídos em conjunto!
Tantas vezes queremos dar às nossas crianças tudo o que podemos e não podemos para não ficarem para trás. Mas o que elas querem mesmo é atenção, tempo de qualidade.
Uma tarde, fui com os meus sobrinhos do coração, oriundos da Eritreia, fazer um programa que achei que seria espetacular para eles: hambúrgueres, cinema, pipocas, parque infantil a seguir. No final da tarde, passei por casa dos meus pais para entregar uma coisa. Quando os deixei na sua casa, perguntei o que tinham gostado mais. Disseram-me: ir a casa dos avós! Sim, porque não têm cá família alargada e sentirem o abraço dos mais velhos foi importante para eles.
Se ser criança não é fácil, ser criança estrangeira em Portugal é ainda mais difícil! Seja porque vieram com os pais para um país que não escolheram, cuja língua não falam, ondem conhecem muito pouca gente, seja porque nasceram em Portugal, mas a sua aparência diferente faz com que constantemente lhes digam para ir para a sua terra. Qual terra? Não conhecem outra.
Ao colocarmos os óculos protetores de crianças, convém ter um olhar aberto a todos, não apenas às crianças que são da nossa família, mas a todas as que nos rodeiam, ajudando também, através dos nossos filhos/sobrinhos/amigos, a criar crianças felizes, pois irão ser adultos felizes.
Mas como proteger mesmo as crianças? Para além de estar atento? Perceber as causas, tentar ajudar na raiz dos problemas. Dando apoio enquanto amigos ou familiares, às famílias que estão mais assoberbadas, seja de trabalho, seja com outro tipo de dificuldades.
Quando toda a ajuda não altera os comportamentos dos adultos para com as crianças e as coloca em perigo, devemos comunicar à CPCJ do local de residência da criança. Comunicar uma situação de perigo é um ato de amor para com aquela criança. É um sinal de que estamos atentos e caberá à CPCJ, na sua análise diagnóstica, perceber o que se passa e definir medidas de proteção concretas, ou arquivar, caso o perigo não exista ou não subsista.
Compreendemos que ser criança não é fácil. Ser pai, mãe ou cuidador também não. Os tempos que vivemos são muito desafiantes, trazem-nos novas formas de comunicar e de relacionar. Trazem igualmente novos perigos, muitos deles no quarto ao lado, via internet.
A Polícia Judiciária afirma que houve um aumento substancial de abuso sexual de crianças, online, todos eles à noite. São momentos em que as crianças estão em casa, no seu quarto. Pode ser evitável com limite de horário de uso do digital.
O estabelecimento de limites faz parte da parentalidade positiva, que é o “comportamento parental baseado no melhor interesse da criança e que assegura a satisfação das principais necessidades das crianças e a sua capacitação, sem violência, proporcionando-lhe o reconhecimento e a orientação necessários, o que implica a fixação de limites ao seu comportamento, para possibilitar o seu pleno desenvolvimento.”
Ao protegermos as crianças, estamos a construir um futuro mais humano e solidário. Cada ato de amor, cada gesto de apoio, cada limite estabelecido com carinho, contribui para o crescimento de seres humanos capazes de transformar o mundo. Juntos podemos criar um ambiente onde todas as crianças, independentemente da sua origem ou aparência, possam crescer felizes e seguras, sabendo que são amadas e valorizadas.
A esperança reside em cada um de nós, na nossa capacidade de não ficar indiferente e de semear um amanhã melhor para todos.
Se queremos criar adultos felizes, temos de começar já a proteger as nossas crianças, porque proteger crianças compete a todos!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.